BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504


A OBSERVAÇÃO DE PRÁTICAS DE PERFORMANCE NO ENSINO DE LITERATURA EM TIMOR-LESTE: UMA EXPERIÊNCIA DE TRABALHO NO PROGRAMA CAPES/PQLP



OBSERVATION OF PERFORMANCE PRACTICES IN LITERATURE TEACHING

IN EAST TIMOR: EXPERIENCE WORKING IN THE PROGRAMME CAPES/PQLP

Daniel Borges1

Resumo: O presente artigo consiste na apresentação da problemática decorrente de situações vividas no programa de cooperação internacional CAPES/PQLP, em 2014, em Timor-Leste. A problemática em questão advém da observação do conflito entre metodologias usadas no ensino de literatura no país. Busca-se afirmar a necessária relação entre caminhos metodológicos e questões contextuais de fundo (o quê, para quem, por que e quando) no momento de escolher uma abordagem para o ensino de literatura. Ainda, problematiza-se o ensino da literatura valorizando o vínculo incontestável entre a oralidade e a escrita, a partir de referencial teórico condizente com a concepção e o direcionamento da análise: a abordagem da voz no trabalho de Paul Zumthor. Busca-se assim trazer contribuições para o entendimento de especificidades relacionadas ao ensino de literatura e à escrita literária em Timor-Leste.

Palavras-chave: performance. oralidade. ensino de literatura. Timor-Leste

Abstract: This article presents the issues arising from the situations experienced in the CAPES/PQLP international cooperation program in Timor-Leste in 2014. The problem in question stems from the observation of the conflict between the methodologies used in the teaching of literature in the country. It seeks to affirm the necessary relationship between methodological pathways and substantive contextual questions (what, for whom, why and when) when choosing an approach to literature teaching. In addition, the teaching of literature poses a problem by valuing the indisputable link between orality and writing, based on a theoretical framework corresponding to the conception and direction of analysis: the approach to voice in Paul Zumthor works. It seeks to contribute to the understanding of the specificities related to the teaching of literature and literary writing in Timor-Leste.



Keywords: performance. orality. literature teaching. Timor-Leste



Introdução

As situações vividas em Timor-Leste como cooperante no programa de cooperação internacional CAPES/PQLP, em 2014, nos permitiram observar a formação do campo de ensino de Literatura e de Língua Portuguesa, na qualidade de professor destas disciplinas. Durante um ano de trabalho em Timor-Leste, pudemos entrar em contato com um quadro no qual se configura uma situação de tensão entre o planejamento institucional do ensino de literatura e a prática dos professores timorenses da disciplina de Estudos Literários, do curso de Letras da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL).

A situação observada mostrou que o atual planejamento do ensino de literatura no país tem como principal ponto de apoio e de investimento público os manuais de ensino de literatura Temas de Literatura e Cultura (RAMOS et al., 2012)⁠, distribuídos no ensino secundário, que se propõem a abordar e definir a literatura oral timorense em seus programas. Para atingir esse objetivo, os manuais excluem a diversidade cultural e linguística presente no país e também os contextos de produção e de recepção da literatura oral e da vocalidade2. A voz viva, tão importante nas performances3 orais das comunidades timorenses, têm sua importância diminuída em detrimento de uma concepção redutora de literatura oral.

Entretanto, a vocalidade é o centro de práticas de ensino de literatura de boa parte dos professores timorenses nos cursos de formação de professores e no Ensino Secundário Geral. Obrigados a ensinar a literatura em língua portuguesa, esses professores encorajam os alunos a traduzir e a escrever a literatura oral de seus municípios de origem e de suas famílias, e a performatizá-la nos cursos de literatura. Eles atribuem a essa literatura o mesmo nível de importância que à literatura escrita, e consideram que o efeito literário é o resultado das técnicas vocal e escrita, interação que solicita o texto, mas também o corpo e a voz em presença (Zumthor 1983; 1987)⁠.

Em relação a esta dupla configuração do ensino de literatura em Timor-Leste, pretende-se confrontar algumas concepções presentes nos manuais de ensino às práticas de ensino de professores timorenses. Para tanto, apresentaremos algumas particularidades das aulas destes professores, como o uso de literatura oral, e sua tradução estético literária como alternativa válida para o ensino de literatura, a despeito das concepções restritivas dos manuais.

1 - Primeiro olhar: a experiência como professor de literatura no PQLP/CAPES

A problemática em questão parte de uma experiência como docente em Timor-Leste no âmbito do Programa de Qualificação de Professores e de Ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste (PQLP)4. O programa brasileiro de cooperação internacional tem por objetivo específico o ensino da língua portuguesa5 e outras atividades ligadas à formação de professores provenientes de várias instituições timorenses de ensino. Foi no âmbito desta experiência profissional que se constituiu um primeiro contato com as práticas de ensino dos professores timorenses.

Na formação inicial e contínua dos professores, modalidade na qual trabalhamos, os professores timorenses ensinavam em companhia de professores estrangeiros, depois de terem preparado e discutido a metodologia e o material, numa prática dita de co-docência. Idealmente, o trabalho com os professores no curso de literatura fazia-se através do planeamento conjunto dos cursos, da didática da disciplina ensinada e da intervenção dos dois professores na sala de aula. Entretanto, por várias razões e em certos casos, os professores estrangeiros acabavam por assumir sozinhos a inteira responsabilidade dos cursos do professor timorense.

Desde o início dessa experiência de ensino, depois de um primeiro encontro com o co-docente para planejar um curso, percebemos que o colega timorense não tinha qualquer afinidade com os meus códigos de ensino e nem com as concepções ocidentais da literatura. Depois deste encontro com o professor, este desapareceu da universidade, e não tivemos mais notícias dele até ao fim do semestre.

Este primeiro contato deixou uma impressão muito negativa e até começamos a aceitar algumas opiniões de colegas portugueses e brasileiros que afirmavam que os professores timorenses não queriam aprender nada e ainda aproveitavam a mínima oportunidade para fugir do trabalho. Além disso, outro problema apareceu, ligado à metodologia do ensino da literatura: os cursos na universidade eram acompanhados com dificuldade pelos estudantes.

Os 24 anos de dominação indonésia em Timor-Leste6 criaram um ambiente de guerra que não favoreceu política de leitura alguma, pois, durante a guerra, as comunidades orais apresentaram uma tendência a se fecharem culturalmente sobre si mesmas. Ainda hoje, após 20 anos de democratização, o país sofre com a falta de bibliotecas, com políticas incipientes de leitura e com a parca de circulação de livros7. Tudo isso contribui para que a maioria dos estudantes tenham muita dificuldade para ler e parar formar um discurso sobre a literatura. Além disso, em minha situação inicial como professor, minha metododologia contemplava pouco os universos de referência dos estudantes e não apresentava nada que aproximasse a literatura de seus quotidianos.

Numa tentativa de resolver a situação, decidi examinar os manuais de ensino utilizados obrigatoriamente no ensino público para verificar a sua utilidade. Estes manuais seriam o material de trabalho obrigatório que os estudantes, enquanto futuros professores de literatura, teriam que utilizar em seus próprios cursos, no futuro. Depois de uma leitura atenta dos manuais e de trocas de ideias com alguns colegas professores a propósito de suas experiências, decidimos deixar de utilizá-los. A forma como os manuais apresentavam a literatura não era adequada à realidade cultural e linguística de Timor e esse material merecia uma revisão crítica sob uma perspectiva pós-colonial.

Em Timor-Leste e entre os povos da Melanésia8, a literatura oral funciona dentro de importantes dinâmicas identitárias e sociais. Ela se pluraliza em redes de narração oral que datam de milhares de anos. Essa oralidade se fortaleceu bastante durante os 24 anos de resistência aos invasores indonésios e que terminou após a restauração da independência do país, em 2002. Isso porque a narração oral foi duplamente preponderante. Primeiramente, foi um dos meios que os guerrilheiros timorenses privilegiaram para se comunicar sem ser percebidos pelas forças invasoras. Em segundo lugar, como os narradores tradicionais sempre foram autoridades respeitadíssimas em toda parte de Timor-Leste9, foi um modo eficiente de manter a coesão cultural que levou à autodeterminação dos timorenses enquanto povo.

Em contraste com este contexto, os manuais de ensino de literatura mais recentes preconizam outras formas de estruturar sua proposta de ensino: baseiam-se na apresentação de identidades fixas, lusófonas10 e dadas a priori, e ignoram as dinâmicas de identificação culturais existentes no país. A proposta contida nos manuais contribui para a constituição de uma hierarquia identitária, baseada na destituição dos objetos culturais timorenses do estatuto de arte e na sobreposição de uma identidade fixa da lusofonia11.

Um dos modos de hierarquização de objetos culturais é a adoção de categorias estéticas específicas empregadas nos manuais. Um exemplo é a adoção das classificações Jolles (1972)⁠, autor de Formas simples, e de seu entendimento de que literatura oral não é arte e não é dotada de autonomia artística. Jolles analisa a narração oral a partir de gêneros escritos e emprega uma concepção hegeliana baseada no modelo forma-matéria. As consequências são que, se por um lado os manuais simplificam excessivamente a literatura oral timorense, classificando-a como formas simples e definindo-a em relação ao texto escrito; por outro lado eles não levam em conta a performance e o contexto cultural para a constituição da literatura oral enquanto obra.

O problemas metodológicos presentes nos manuais de ensino eram conhecidos pelos professores de literatura da cooperação internacional brasileira. Após algumas discussões com professores da cooperação sobre que metodologia empregar, foi aconselhado trabalhar a literatura a partir dos textos orais trazidos pelos estudantes. Assim, propomos aos estudantes que escrevessem textos que considerassem literatura. Juntos, procuramos seguir os movimentos narrativos destes textos, compostos pela literatura oral contada entre as famílias dos estudantes.

O material recolhido nas aulas nos permitiu construir planos de aula focados na análise narratológica e da ideia de efeito literário em performance. A execução dos planos de aula conduziu a discussões sobre hipóteses de leitura com os estudantes, relacionando a literatura oral timorense a práticas culturais timorenses e comparando-a a outras literaturas orais, como a literatura do povo Munduruku, do Brasil. Também conseguimos ler durante o semestre alguns textos teóricos em torno da questão dos Direitos Humanos, como “O direito à literatura”, do crítico literário brasileiro Antonio Candido (1995)⁠. A questão principal que nos orientou foi a de como analisar uma narrativa timorense sem cair numa atitude puramente neocolonialista.

No final do semestre, ao discutir com um professor do departamento sobre práticas de ensino da literatura, surgiu o assunto do co-docente timorense que havia desaparecido. O colega nos disse que o co-docente estava dando aulas na aldeia de Aileu, um município timorense, e que, na realidade, tinha desaparecido por medo dos chamados “professores internacionais”, afinal, ele não falava português segundo a norma padrão e não conhecia os modos de ensino que lhe eram propostos pelas cooperações de ensino. Após essa conversa, conseguimos realizar uma entrevista com o co-docente que havia desaparecido, o que mudou totalmente nossa primeira opinião sobre ele (e sobre os outros professores timorenses).

Durante a entrevista, tivemos acesso a outra realidade, paralela ao mundo das cooperações internacionais e das estruturações oficiais do programa de literatura e que mostrava uma outra vida dos objetos literários em Timor-Leste. O co-docente contou-nos que existem, entre os professores timorenses, práticas consolidadas de ensino da literatura que utilizam a performance da literatura oral como literatura.

Segundo ele, os professores pedem aos estudantes que busquem narrativas orais nas aldeias e que as traduzam em português para serem performatizadas na sala de aula. As performances completam-se com a circulação de manuais alternativos (não oficiais) elaborados pelos professores timorenses que, tendo conseguido fazer cursos de mestrado e doutoramento em Portugal ou no Brasil, e dedicado as suas pesquisas à literatura oral timorense, partilhavam os seus trabalhos com os seus colegas. O co-docente falou-nos também sobre a publicação e circulação de antologias dos textos apresentados pelos estudantes. Segundo ele, nenhuma destas práticas foram reconhecidas como válidas por aqueles que planejaram e elaboraram os manuais de literatura postos em circulação pelo governo a partir de 2012.

Depois desta entrevista, pudemos realmente acompanhar o co-docente nas suas aulas de literatura, mas na qualidade de observador. Com base nesta experiência, encontramo-nos posteriormente com todos os professores de literatura das duas universidades12 - a Unital e a Untl - que o co-docente tinha indicado como referências para o ensino da literatura. Os outros professores relataram seus pontos de vista sobre a construção do programa de ensino da literatura em Timor-Leste, e sobre a origem dos manuais de ensino Temas de Literatura e Cultura e das exclusões de que são alvo. Segundo os professores entrevistados, na elaboração destes manuais, as equipes de elaboração demonstraram um desprezo total para com eles e para com os pesquisadores timorenses13.



2 - Olhar qualificado: elaboração de uma problemática

Com base nas observações «de terreno» e depois de deixarmos Timor Leste, sintetizamos uma problemática de pesquisa que decorre da injunção ocasionada pelo estabelecimento de normas no campo literário neste país. A importância das maneiras de abordar a literatura oral dos professores timorenses não é tão insignificante se tivermos em conta que a integração da literatura oral com o escrito no processo de ensino já foi sublinhada nos trabalhos de Goody (1978)⁠, Havelock (1986, 1995)⁠, Edwards e Sienkewicz (1990)⁠ Reyzábal (1999)⁠, como aponta ⁠Fernandes (2007)⁠. Além disso, como os professores timorenses, todos estes investigadores sublinham a autonomia técnica da literatura oral em relação à literatura escrita. Os Estudos Culturais propuseram também, a partir dos anos 1980, compreender o texto como um objeto cultural de um determinado contexto, o que mostra que os recursos de contextualização da literatura oral implementados por esses professores não são uma anormalidade nos estudos literários.

A forma como os professores timorenses fazem funcionar a literatura oral mostra que a consideração da vocalidade na produção literária exige um modelo epistemológico específico. Em vez de uma dualidade forma-matéria, a performance de literatura oral mostra antes uma conexão entre técnicas que nos remete ao papel da voz e da literatura oral na sociedade timorense.

Definimos técnica a partir do pensamento da individuação de Gilbert Simondon (2012)⁠. Uma técnica consiste no modo material de captar as particularidades expressivas de um meio, com o objetivo de individuar um ser e torná-lo visível. A gama do que pode ser considerado como “ser” é infinita: ideias, identidades, seres vivos, conceitos, etc. A observação de várias performances de literatura oral dos alunos timorenses mostra um uso da literatura segundo o qual tanto a técnica oral como a técnica escrita são utilizadas para individuar (produzir) novas identidades.

Analisando as performances dos textos que os alunos timorenses trouxeram nas aulas de literatura, a pedido dos professores (cerca de 250 textos), notamos que alunos têm uma predileção por narrativas de totem, que definem as particularidades de cada indivíduo e de cada família. Assim 70% desses textos remetem à interação de mundos humanos com mundos animais, vegetais.

Por exemplo, a narrativa Bui-Laho (do tetum, menina-rata) conta a história de como uma mãe humana adota uma ratinha perdida na mata. Após esse evento, a rata incorpora a genealogia da família à qual pertence a história. Cria-se um tabu de interdição segundo o qual os integrantes da família são proibidos de fazer mal aos ratos. Entretanto, as virtudes dessa família no que consiste à reprodução e à agricultura são reputadas à parte rato de sua genealogia.

Segundo Philipe Descola (2015)14⁠, nas sociedades totemistas, plantas e animais recebem atributos antropomórficos, como a intencionalidade, a subjetividade, as afeições, ou mesmo a palavra em certas circunstâncias, ao mesmo tempo que características propriamente sociais: a hierarquia dos estatutos, comportamentos baseados no respeito das regras de parentesco ou de códigos éticos, a atividade ritual, etc.

Nas narrações totem dos alunos, a relação entre humanos e não-humanos define os sujeitos de um determinado grupo social, normalmente uma família. O indivíduo se compõe identitariamente com15 um animal ou uma planta, e ambos são considerados como tendo elementos físicos e de interioridade idênticos: é considerado capaz de falar na língua do animal, e de incorporar certos atributos, como a velocidade e a capacidade de defesa. Não existe uma desproporção de importância existencial entre as duas espécies.

No curso de literatura dos professores timorenses existe uma enorme diversidade étnica, e os alunos consideram-se, na maior parte das vezes, através destas identidades étnicas. Assim, as narrativas do totem captam relações que compõem cada família e cada indivíduo, e tornam essas relações visíveis. Esta expressividade é narrativa, porque a narração totem depende de uma narrativa, mas também está presente, porque se completa com os sinais visíveis na performance: gestos, entonações, vozes e aparências.

Cada aluno conta sua história à classe, e a performance é comentada pelo público. Alunos e professores explicam o efeito literário destas performances e os comparam com notícias ou romances da literatura escrita. Os comentários incidem também sobre as famílias designadas pelos totens e sobre a importância destas narrativas para conhecer a cultura timorense e a identidade.

O modo como estas performances abordam as categorias de identidade e de cultura é bastante intensivo, no sentido em que é a partir do específico e do diverso que definem identidade e cultura, e não a partir de uma norma cultural já estabelecida, extensiva. As performances orais são utilizadas como técnicas que captam as particularidades expressivas do corpo, da voz e das narrações, e individuam pensamentos, sensações, identidades, etc. A função das narrativas nestas performances é tornar visíveis os novos padrões da cultura e as novas identidades no curso da literatura.

Estes modos de fazer funcionar a literatura oral não são arbitrários : seguem os usos da voz nas sociedades timorenses. O totemismo é um modo de identificação bastante comum em Timor-Leste, e pode ser classificado em categorias genealógicas que mostram de que relações os indivíduos se compõem: a expressividade dos indivíduos nunca é dada em si mesma, mas composta pelas relações que mantêm com outras famílias e também pelas relações que mantêm com comunidades de seres não humanos. É através destas relações que as suas identidades são vistas, ouvidas e tornadas expressivas umas perante as outras, em situações de desempenho.

Bovensiepen e Rosa (2016)⁠ explicam como a incorporação do Outro16 em Timor-Leste revela um mecanismo em que as culturas se reequilibram nos encontros históricos, incorporando o ponto de vista do Outro na sua própria cultura. Isto leva à transformação da cultura, considerando a presença do Outro no seu território como parte dessa cultura. Nesta dinâmica, as narrativas orais do totem têm o papel de tornar visíveis os atributos de cada um para que o Outro possa incorporá-los.

Os investigadores sublinham também que, se o Outro, enquanto não-humano, é tão desejado nestas culturas, é porque no modo de conceber a pessoa em Timor-Leste não há identidades fixas e pensadas como essências impermeáveis. Os indivíduos são sempre constituídos (indivíduos) em relação ao Outro. Isto faz do Outro um ponto de chegada no processo de individuação da pessoa.

A performance de literatura oral, com a narrativa como forma de evidenciar novas identidades não é uma aberração enquanto objeto literário. Sauvagnargues (2005) ⁠identifica a função artística de tornar visíveis novas forças na literatura em geral e na arte contemporânea. Esta maneira de pensar a literatura é também inerente à literatura escrita e seu uso se configura exatamente no que autores como Butler (2003)⁠ e Schechner (2003)⁠ definem como performatividade: a encenação de novas identidades no plano social a partir de um ato sobre uma norma instituída. ⁠

Estes autores mostram também que, sob certos pontos de vista, tal como a literatura oral, a literatura escrita é dotada de performatividade, e o seu efeito resulta do confronto entre várias técnicas heterogêneas, sem hierarquia de importância entre técnicas. Nos trabalhos dos artistas contemporâneos é comum a experimentação com novas técnicas e novos materiais. O mesmo se aplica aos trabalhos dos etnólogos, que devem ser capazes de captar e traduzir estas novas formas de existência através das suas investigações compostas por várias técnicas (orais e escritas) de modo a individuar os saberes que alargam a ideia de humano.

Por outro lado, as obras literárias escritas são compostos de linguagem escrita que captam peculiaridades expressivas dessa mesma linguagem e da narrativa, e a arte em geral, consiste em tornar expressivas particularidades dos diversos materiais para individuar também pensamentos, sensações, identidades, etc. Enquanto a literatura escrita é técnica escrita mais narrativa, a literatura oral se compõe de voz, gestos, contexto e ambiente mais narrativa, e ambas são processos artísticos de criação.

Nesse sentido, as maneiras de fazer funcionar a literatura oral nos cursos observados em Timor-Leste implementam uma perspectiva técnica que torna inutilizável qualquer ideia baseada em uma dependência da literatura oral em relação à literatura escrita.



Considerações finais

A performance de literatura oral praticada pelos professores é uma modalidade artística e, como tal, dotada de performatividade e de técnica. Sua dinâmica de produção e de recepção está ligada diretamente ao uso da voz e aos sistemas de individuação e de produções culturais timorenses. Ao mesmo tempo, as performance de literatura oral em questão têm características estéticas suficientemente consistentes par invalidar a desvalorização da literatura oral feita nos Manuais Temas de Literatura e Cultura.

Mas é preciso considerar que, para o caso em questão, não se trata de uma problemática no sentido de um sistema dialético, onde o termo negativo (os professores timorenses) é despojado de qualidades expressivas no sistema de ensino de literatura. Valorizar a performance de literatura oral por suas particularidades intrínsecas é só metade do trabalho. A outra metade consiste na consideração do sistema de ensino a partir do ponto de vista dos professores timorenses, trabalho que ainda está por ser feito e que mostra o papel político que a literatura pode assumir.

Além disso, a questão do efeito ocasionado pela imposição de uma norma no sistema literário deve ser redobrada por outra questão: «Qual é o efeito no sistema de ensino quando as práticas dos professores para a aprendizagem da literatura são consideradas elementos ativos e com um poder de modificação sobre este sistema? ». Isto significa confrontar o efeito normativo dos manuais Temas de Literatura e Cultura com o efeito das práticas reais de ensino da literatura, feitas pelos professores timorenses e estruturar um sistema que considere a performance de literatura oral como uma arte, com todas as suas implicações estéticas. Deixo esta proposta para pesquisas futuras.











Referências

BEATTIE, J.; WAGNER, R. The Invention of Culture. RAIN, n. 13, p. 10, mar. 1976.

BOVENSIEPEN, J.; ROSA, F. D. Transformations of the Sacred in East Timor. Comparative Studies in Society and History, v. 58, n. 3, p. 664–693, 2016.

BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CANDIDO, A. « O direito à literatura ». In: Vários escritos. 3a ed.. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

DESCOLA, P. Par-delà nature et culture. coll. Folio essais ed. Paris: Presses universitaires de Nancy, 2015.

EDWARDS, V.; SIZNKEWICZ, T. J. Oral cultures past and present. Rappin’ and Homer. Oxford: Basil Blackwell, 1990.

FARACO, C. A. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola Editorial, 2016.

FERNANDES, F. G. Oralidade e poesia oral: problemas e alternatias para o ensino de literatura. in ERNST, Aracy; FUNCK, Susana Bornéo (org) Escrita e Oralidade. Questões e perspectivas, p. 317–331, 2007.

GOODY, J. The domestication of the savage mind. New York: Cambridge University Prees, 1978.

HAVELOCK, E. The muse learns to write. New Haven and London: [s.n.].

_________, « A equação oralidade-cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna. » In: OLSON, D. R.; TORRANCE, N. (ORGS) (Eds.). Cultura, Escrita e Oralidade. São Paulo: Ática, 1995.

HULL, G. The Languages of East Timor: Some Basic Facts. DIT, Dili – Timor-Leste : 2002.

JOLLES, A. Formes simples. [s.l.] Seuil, 1972.

LATOUR, B. Nous n'avons jamais été modernes : essai d'anthropologie symétrique. Paris : La découverte, 1997.

LUCCA, Daniel de. « Notas sobre a circulação de livros em Díli, Timor-Leste: Letras, lugares e cultura material ». In Anais do III Seminário de Pesquisa da FESP-SP. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 2014.

RAMOS, Ana Margarida et al. Temas de literatura e cultura: manual do Aluno de 10o ano. Díli - Timor-Leste: 2012.

RAMOS, Ana Margarida. “Temas de literatura e cultura: os desafios da educação literária no sistema de ensino timorense” In Revista Via Atlântica, São Paulo, 2017, n. 31, p. 331-346

REYZÁBAL, M. V. A comunicação oral e sua didática. Bauru: Edusc, 1999.

SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art. Paris : PUF, 2005.

SCHECHNER, R. « O que é performance? » in O Percevejo, v. 11, n. 12, p. 26–50, 2003.

SILVA, K.; SOUSA, L. Arte, agência e efeitos de poder em Timor-Leste. Cadernos de arte e antropologia, v. 4, n. 1, 2015.

SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techniques. Aubier ed. Paris: 2012. ZUMTHOR, Introduction à la poésie orale. France: Seuil, 1983.

________. La lettre et la voix. France: Seuil, 1987.

_________. Performance, réception et lecture. France : Préambule, 1990.





1 Daniel Borges é mestre em teoria e história literária pela Unicamp e atualmente é doutorando no departamento de estudos lusófonos pela universidade Paris-Nanterre.

2 Para escapar ao reducionismo do termo oralidade, Zumthor utiliza a expressão vocalidade, que corresponderia à palavra poética enquanto voz viva que se une ao corpo, desencobrindo-se como presença sonora, gestual e cênica. Enquanto a oralidade fica restrita à expressão oral, a vocalidade é mais ampla, uma vez que inclui os outros aspectos, além dos sonoros, que permeiam a realização do ato de transmissão oral; a vocalidade, nos dizeres do estudioso, “é a historicidade de uma voz: seu uso” (1983, p. 21) e a compreensão da voz em uso não se restringe ao fenômeno puramente sonoro. O conceito de vocalidade implica também um sentido antropológico (ZUMTHOR 1990), na medida em que, em comunidades predominantemente orais, a voz se manifesta como um valor antropológico partilhado por grupos sociais heterogêneos em contacto no mesmo espaço. A voz é constitutiva da formação das identidades e também é o que torna visível a alteridade, mediante a narração. Assim, todas as instituições que garantem a narração oral têm um valor social específico, o que confere valor antropológico à voz.

3 Paul Zumthor (1987; 1983) define performance como o evento no qual o texto oral se realiza com a presença do contador e dos ouvintes.

4 Até o ano de 2015, o PQLP era administrado por uma equipe multidisciplinar da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil, e pelo Departamento Cultural (DC) do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil (MRE). Até 2015, o PQLP era a única atividade civil de cooperação internacional brasileira em Timor-Leste. Hoje, este programa está suspenso e não envia mais nenhum professor desde o ano de 2013.

5 A língua portuguesa é oficial em Timor-Leste desde 2002, como língua de trabalho e de comunicação, ao lado do tetum, língua de origem timorense. O Censo Nacional de 2010 apurou que cerca de 90% da população usa tétum diariamente. Uns 35% são utilizadores fluentes do indonésio e, 23,5% falam, lêem e escrevem português. Este é um número extremamente otimista se comparado ao Censo Nacional de 2002 5% dos timorenses dizia compreender português. (HULL, 2002)⁠ Ao lado da língua portuguesa, o tétum é a língua oficial, e uma boa parte da população fala língua indonésia e inglês. Soma-se a essa paisagem linguística a existência de cerca de 16 línguas nativas, sem contar os dialetos.

6 Os militares indonésios dominaram Timor-Leste de 1975 a 2000.

7 Para uma descrição precisa da parca circulação de livros em Timor-Leste ver Lucca (2014).

8 A Melanésia (nome de origem grega que significa «ilha negra») é uma região da Oceania que inclui os territórios de Timor, Ilhas Molucas, Nova Guiné, Ilhas Salomão, Vanuatu, Nova Caledónia e Fiji.

9 Para um panorama das expressões artísticas em Timor-Leste, indicamos o dossiê « Arte, agência e efeitos de poder em Timor-Leste » (SILVA; SOUSA, 2015).

10 Para uma crítica do uso da lusofonia enquanto identidade fixa e a-histórica em consonância com projetos políticos ver Faraco (2016).

11 Segundo os autores dos manuais, o “programa assenta na potenciação da relação com a lusofonia [...]” (Ramos, 2017, p. 3). Nesse sentido, no manual do aluno de 10° ano, a unidade temática 3, Identidade (RAMOS et al, 2012, p. 36) é toda dedicada a mostrar as evidências da identidade lusófonas em Timor-Leste e os benefícios de se aprender português. A lusofonia é apresentada como uma identidade, que se afirma tanto pelo uso da língua portuguesa, quanto pelas obras de literatura apresentadas no manual. Para uma leitura crítica deste conceito, ver Couto (2009); Fonseca (2013) e Lourenço (2004)

12 Durante o período em Timor-Leste fizemos pesquisas participativas de campo, onde seguimos o curso de três professores de literatura e entrevistamos 23 outros professores a respeito de suas práticas de ensino. A metodologia desta investigação inscreveu-se, numa abordagem qualitativa, analítica, segundo as iniciativas de Latour (1997)⁠ e de Beattie e Wagner (1976)⁠, erigidas em método pelos estudos de cultura material : mostrar como alguns objetos podem fazer ressonar valores específicos, dependendo do meio em que funcionam.

13 Pude ter a confirmação deste desprezo durante colóquio em Timor-Leste. Note-se também que, na primeira página dos manuais de literatura do 10o ano (Ramos et al, 2012), são citados os nomes completos de todos os “autores” e coordenadores, todos estrangeiros, enquanto que os mesmos manuais não dão nem o número nem o nome dos colaboradores locais. São simplesmente designados através da referência “Colaboração das equipas técnicas timorenses da disciplina”.

14 Descola salienta que « num tal modo de identificação, os objectos naturais não constituem, portanto, um sistema de sinais que autoriza transposições categoriais, mas sim uma coleção de sujeitos com os quais os homens tecem, dia após dia, relações sociais. » (Idem, p.223).

15 Trata-se de uma composição com outro ser, pois segundo a concepção da pessoa em Timor-Leste, os sujeitos não são concebidos como dados a-priori, mas como derivados das relações que eles estabelecem com seres não-humanos. A relação de totem é uma possibilidade desse tipo de relação.

16 Utiliza-se a expressão « Outro » iniciao em maiúscula, para marcar a qualidade heterogênea que um sujeito pode assumir em uma relação⁠.

121