Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504

APRESENTAÇÃO



Na chamada a este presente número da revista Boitatá, visando a uma pergunta sobre nosso fazer científico em nossos atuais contextos, sob nossas atuais circunstâncias, ante nossos atuais problemas, Mário Cézar Leite nos enunciara que


métodos sempre foram a “pedra no sapato” de pesquisadores de todas as áreas do conhecimento. “Pedras nos sapatos” porque se acredita, não sem razão de certo modo, que são eles que definem e configuram o padrão de legitimidade, pertinência, cientificidade, academicidade e competência das pesquisas.


Recorrera, à ocasião, a uma epígrafe de Paul Feyerabend a fim de delinear os termos a nosso chamamento, convidando a comunidade acadêmica em torno das Poéticas Orais a estabelecer, mediante artigos circulantes em nossa comunidade científica, um par de perguntas acerca de nosso fazer-ciência. Quando este autor, recorrente em nosso treinamento nas lidas acadêmicas1, assinala o quanto nossa “invenção, elaboração e utilização de teorias” desenha, [frequentemente], edifícios intelectuais “incompatíveis não apenas com outras teorias, mas, ainda, com experimentos, com fatos e observações”, nos convida a visitar nosso lugar desde onde fazemos ciência; nele, nosso lugar naquilo que Bhabha denominara equação conhecimento-poder (BHABHA, 1998, p. 45), equação na qual as literaturas que investigamos, as(os) sujeitas(os) que investigamos, por vezes resistem às roupas e às armas da teoria, sem que ante isso saibamos como proceder. Feyerabend, na citação escolhida por Leite, propõe um primeiro movimento: “podemos começar assinalando que nenhuma teoria está jamais em concordância com todos os fatos conhecidos em seu domínio”.

Como iniciativas para trilhar, registrar e discutir este caminho ora proposto, este número 26 da revista Boitatá nos apresenta outros três movimentos, na Seção Temática, devidamente com outros seis movimentos na Seção Livre. Nesta primeira, o artigo de Maria Ignez Novais Ayala discute nossos procedimentos metodológicos na investigação de documentos orais (procedimento circulante em nossa comunidade científica das Poéticas Orais), salientando, desde o resumo de seu artigo, o caráter interdisciplinar desta base de procedimentos; como tônica do esforço metodológico proposto a este número, Ayala situa, ao centro, o princípio motor de nosso fazer-ciência:


Antes de tudo, preciso informar que desde os primeiros contatos com artistas populares em apresentações públicas no início dos anos 1970 até hoje o que me atrai são as pessoas. (...) Mesmo quando a conversa era sobre cantos, versos, histórias, essas pessoas se tornaram especiais por um toque de humor, por um comentário inesperado, pelo negaceio, por seu modo de entender o que está na vida, no mundo, às vezes tentando apontar o que é misterioso.


Independentemente de nosso destino, cumpre ressaltar as(os) sujeitas(os) de investigação ao centro, de modo a, partindo da precariedade de nosso lugar epistêmico, propor ciência sobre e desde nossos lugares: “Firma-se desde cedo a importância da escuta e da observação direta. Também fica evidente que sempre há experiência teórica resultante da combinação de várias leituras de autores de diferentes áreas que me levam a questionar, a pensar de um modo empenhado e crítico”.

Por sua vez, o artigo de Rodrigo Lemos Soares, desde um horizonte transdiciplinar, busca “identificar as presenças da oralidade em processos de ensino de danças, tendo como local de observação seis terreiros de Quimbanda, da cidade de Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul. A partir de experiências corpóreo-vocais, observo os aspectos mítico e simbólico das tradições orais, próprias dos terreiros, entendendo-as como sua base”. Em respeito ao “problema do método” por nós proposto, Lemos conclui a introdução de seu artigo com o desenho de sua perspectiva à pergunta inicial:


(…) abordar a oralidade em nossas pesquisas ainda suscita alguns questionamentos referentes à validação dos métodos, como se a maior parte das metodologias não dependesse da narrativa, do relato, das experiências dos (as) participantes (GIL, 1999). (…) Ter a oralidade como fundadora de nossas ações, enquanto educadores (as), implica em assumirmos as narrativas de todos (as) envolvidos (as) na comunidade escolar. (...) Por esse viés, o ensino através da oralidade assume sentido de trocas, sejam elas simbólicas, materiais ou ambas.


Ademais, o artigo de Lemos aponta ao [necessário] caráter transdisciplinar seja do campo das Poéticas Orais, seja dos métodos de investigação aos quais recorremos, dentro do que Leite preconizara na chamada ao número ora apresentado:


Sem método os resultados são duvidosos, inexatos, não científicos e, pior, sem comprovação e sem estatuto de “conhecimento válido”. Óbvio é que métodos e teorias implicam diretamente com a “ontologia”, “existência” e circulação dos objetos.


De modo a construir o referido problema nos domínios da disciplina que tomamos como Teoria Literária, o artigo subsequente, último da Seção Temática, busca, desde seu resumo, situar ao centro o conhecimento produzido pelas(os) sujeitas(os) investigados em nossa atividade científica; partindo de uma experiência de investigação sobre literaturas negras americanas, o artigo toma de empréstimo “a hipótese do potencial epistemológico de obras literárias (DURÃO, 2015) e dela [se] apropriando, (...) examina o potencial epistemológico de obras literárias negras americanas e, por conseguinte, do conhecimento produzido por sujeitas(os) negras(os) americanas(os), mediante exame de suas obras literárias, no âmbito de nossa comunidade científica”. Como conclusão prevista, o referido artigo aponta ao risco de violência epistêmica no âmago de nossas metodologias de investigação que, ao tomar um formato recorrente de relação sujeito-objeto (sujeitas(os) e comunidades por nós investigadas quando tomadas como um objeto de pesquisa), negam o estatuto de conhecimento (em sua produção, discussão e circulação) a estes que denominamos Outro, estabelecendo a Outridade como premissa a definir a natureza destas sujeitas(os) que investigamos:


A comodificação da Outridade tem sido bem-sucedida porque é oferecida cmo um novo deleite, mais intenso, mais satisfatório do que os modos normais de fazer e de sentir. Dentro da cultura das commodities, a etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda insossa que é a cultura branca dominante (hooks, 2019, p. 66; grifo da autora).


De sua parte, esta noção de Outridade2, assim como a noção que lhe acompanha no texto supracitado de bell hooks (a noção de commodity), nos oferece bases profícuas a uma pergunta legítima sobre a relação sujeito-objeto no fazer-ciência das Poéticas Orais, naquilo que ela nos expõe o risco de violência epistêmica contra quens investigamos. A estes que denominamos Outro, por vezes lhes negamos, ao fim e ao cabo, o conhecimento enquanto dado eminentemente humano. Nesta senda, recordamo-nos do alerta de Leite a este respeito, ainda na chamada a este número: a relevância de uma pergunta pela legitimidade do método, em Teoria Literária.


Já vai um pouco longe, pelo bem, o tempo em que os pesquisadores em literatura oral, oralidade, culturas populares viam-se às voltas com justificativas e mais justificativas para seus objetos e estudos nos variados Programas de Pós-graduação. Principalmente aqueles pesquisadores e pesquisadoras que não eram oriundos da Antropologia, Sociologia, Historia. Era preciso provar seus estatutos “científico” e acadêmico e sua legitimidade como arte e/ou conhecimento válido. O que surgiu de bom dessa necessidade de justificativa é que investindo em métodos de outras áreas, adaptando-os, reinventando-os e redimensionando-os – ou mesmo buscando novas possibilidades – os estudos em culturas populares e literaturas orais inseriram-se, com certa antecedência de outros campos do conhecimento, nos estudos interdisciplinares.


Iniciando a Seção Livre, o artigo de Daniela Gebelucha e Walmir Martins dedica-se ao tema da literatura guarani no Rio Grande do Sul, reconhecendo seu caráter refratário no atual estágio dos estudos acadêmicos, no Brasil, seja sobre uma ideia de literatura nacional (ou, particularmente, de uma “literatura nacional” sul-riograndense), seja sobre uma ideia de literatura indígena. Centrando seu artigo no estudo de sujeitas(os) narradoras(es), o artigo, a partir de “processos de oralidade e escritura das narrativas”, propõe uma literatura guarani “compreendida como continuidade espaço temporal ameríndia e de valorização da tradição ancestral, das histórias de contato e dos mitos do povo Guarani”.

Por sua vez, o segundo seguinte da Seção Livre, proposto por Geise Bernadelli, traça a pregunta norteadora sobre o gênero música caipira tomando, como recorte decisivo, “a cisão que acometeu o gênero, assinalando as diferentes noções que se teve ao longo do tempo sobre o ser caipira, sua cultura, seus valores e modo de vida”. Construindo uma história do gênero, a articulista busca compreender “o trabalho que se vem empenhando no atual universo da música caipira brasileira”, em seu percurso rumo à recuperação de “uma realidade, da riqueza dessa cultura, de seus costumes, da peculiaridade de sua constituição”, tal quadro se desenvolve à luz de uma hipótese, de que a referida recuperação se mostra “um dever de memória, de lutar contra a força do esquecimento”.

O terceiro artigo da Seção Livre, composto e assinado a seis mãos por Robervânia de Lima Sá Silva, Érica de Cássia Mai e Zaline do Carmo dos Santos Wanzeler, serve-se do modelo de análise narrativa de Wladmir Propp para empreender uma análise comparativa entre dois textos de distintos gêneros: o conto protagonizado pela Bela Adormecida, com sua primeira versão atribuída a Giambattista Basile; e o filme recente, Malévola, com roteiro de Linda Woolverton e direção de Robert Stromberg, apresentado como uma versão contemporânea do referido conto. Suas conclusões, com apoio em uma teoria do letramento literário, apontam a usos de ambos textos em sala de aula do ensino básico, a partir das análises desenvolvidas no corpo do artigo.

O quarto artigo desta Seção, proposto por Fabíula Martins Ramalho e André Luís Gomes, versa sobre a peça Vaqueiros, de Oswald Barroso, tomando, como eixo, o gênero enquanto categoria habilitada a interpretar as relações familiares na diegese da peça; contudo, a chave de leitura do artigo solicita o trabalho de duas categorias, o gênero e a oralidade, com vistas a uma compreensão do texto de Barroso, lido enquanto “uma linguagem híbrida, metateatral baseada na cultura popular”. Como resultado, Ramalho e Gomes acionam categorias circulantes na comunidade científica das Poéticas Orais, tais como


oralidade, escrita, tradição e teatro para realizar uma análise, ainda que sucinta, de como a tradição oral e popular nordestina é incorporada à peça, criada a partir das formas clássicas da tragédia grega, para representar as vozes dissonantes das mudanças culturais e sociais que também ocorrem no sertão.


De sua parte, o artigo de Alexandre Ferreira Ranieri, Fernando Pessoa e Larissa Melo, propõem um compte rendu dos primeiros resultados do Projeto de Pesquisa A performance oral dos operadores do Direito, Iniciação Científica desenvolvida na universidade de sua atuação profissional, a Universidade Estácio FAP, ao longo do segundo semestre de 2018. Tomando como eixo a noção de performance, o artigo examina a “importância da performance no exercício da atividade jurídica pelos integrantes da defesa técnica no Tribunal do Júri, instituição colegiada que agrega leigos em matéria jurisdicional”. Às análises propostas, o recurso à noção circulante de teatralização agrega aos resultados de pesquisa “ainda maior valor tendo em vista que os operadores precisam fazer com que, além de defender as suas teses, os membros desse corpo de jurados entendam a norma, a doutrina e a jurisprudência”.

No penúltimo artigo do número 26 da revista Boitatá, assinado a oito mãos, Zaline do Carmo dos Santos Wanzele, Josebel Akel Fares, Haelton Antônio Serrão de Carvalho e Robervânia de Lima Sá Silva trazem à lume Marajó, obra de Dalcídio Jurandir, em uma perspectiva comparada a narrativas orais coletadas por Wanzeler (2014), como parte do estudo empreendido em sua dissertação de Mestrado, investigando narrativas orias na comunidade de Tentém, área rural do município de Cametá, região nordeste do Pará O artigo, como tertium comparationis entre ambos textos literários (o romance de Jurandir e as narrativas orais coletadas), estabelece a B(ô)ta enquanto figura feminina própria ao imaginário amazônida, à luz de ferramentas metodológicas oriundas da “História Oral, com pressupostos da abordagem fenomenológica”, visando a uma compreensão “das memórias individuais colhidas por meio da entrevista oral semiestruturada e método de análise de conteúdo”, enquanto condições de possibilidade ao exame das narrativas orais, bem como de sua comparação possível ao texto de Jurandir.


Por fim, o último artigo evoca, desde seu resumo, uma tarefa ao centro de seu objetivo geral, lançando a pergunta acerca do texto final da dissertação “Educação, memórias e saberes amazônicos: vozes de vaqueiros marajoaras”, defendida em 2014; em um texto assinado a seis mãos, Délcia Pereira Pombo, Josebel Akel Fares e Fátima Cristina da Costa Pessoa se dedicam, em um estudo das narrativas orais dos vaqueiros marajoaras, “a apresentar a metodologia empregada nesta investigação e os pressupostos teóricos que embasam o estudo traçado a partir dos relatos desses profissionais no contar da labuta diária sobre o trabalho que realizam pelos campos do Marajó”, estipulando a pergunta sobre nossos métodos de investigação, naquilo que nos permitem estabelecer a escuta e a aprendizagem com as(os) sujeitas(os) que investigamos, mediante exame de suas narrativas.


Dentro da proposta estabelecida na chamada ao número 26 da revista Boitatá, em seu oferecimento das Seções Temática e Livre, esperamos, na publicação de mais um número, oferecer uma contribuição ao debate permanente, no interior da comunidade científica das Poéticas Orais, acerca de nossos métodos e teorias de investigação enquanto sintomas de como estabelecemos relação entre nossas investigações científicas e as(os) sujeitas(os) que investigamos, com as(os) quais aprendemos.


Alcione Corrêa Alves (UFPI)

Mario Cezar Leite (UFMT)


REFERÊNCIAS


HOOKS, Bell. Comendo o outro: desejo e resistência. Olhares negros: raça e representação / tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019, p. 64-95.


BHABHA, Homi K. O compromisso com a teoria. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005, 3a. Reimpressão, p. 43-69 (Coleção Humanitas)


DURÃO, Fábio Akcelrud. Reflexões sobre a metodologia de pesquisa nos estudos literários. DELTA [online], 2015, vol. 31, n. spe, p. 377-390. Disponível no sítio <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44502015000300015&script=sci_abstract&tlng=pt>, último acesso em 21 de abril de 2018.






1 Naquela disciplina que, no campo dos Estudos Literários no Brasil, ainda timidamente, denominamos epistemologia da teoria literária; lá onde, a seu lado, lemos os paradigmas de Thomas Kuhn, a falsificabilidade da teoria científica de Karl Popper, o campo de Pierre Bourdieu, apostando em seu papel formador de bases a nosso fazer científico, ao longo de nossa carreira acadêmica.

2 Em sua nota de tradução, também na página 66, Stephanie Borges nos expõe sua escolha pelo termo Outridade: “Do inglês otherness. Aqui se trata de um 'outro' que não é psicanalítico nem etnográfico (ao qual poderíamos nos referir falando em 'alteridade'), mas de uma pessoa às vezes próxima, da nossa convivência, cujas diferenças que a constituem em termos de raça/gênero são tratadas como algo exótico”.

BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 8