BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 33
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
NA TRAMA NARRATIVA, OS LAÇOS DA VAQUEIRICE: A VOZ QUE CONTA
ENTRELAÇADA AOS SABERES NO CAMPO DO TRABALHO
Délcia Pereira Pombo
3
Josebel Akel Fares
4
Fátima Cristina da Costa Pessoa
5
RESUMO: As implicações teórico-metodológicas tratadas neste texto ilustram a contribuição das
narrativas de vida de cinco gerações de vaqueiros para a compreensão dos saberes do homem
marajoara no seu espaço de trabalho. Na abordagem epistemológica, a prática do trabalho é construída
por meio da voz desses profissionais valendo-se da escuta e coleta das narrativas contadas por eles
mesmos, sobre a lida e as experiências vividas na região dos campos do Marajó. Destaca-se a
relevância do uso das narrativas (auto)biográficas dos vaqueiros da família Vasconcelos, na
potencialidade e possibilidade desse instrumental metodológico na condução da pesquisa em
Educação, memórias e saberes amazônicos: vozes de vaqueiros marajoaras
6
. Este artigo visa,
portanto, a apresentar a metodologia empregada nesta investigação e os pressupostos teóricos que
embasam o estudo traçado a partir dos relatos desses profissionais no contar a labuta diária que
realizam pelos campos do Marajó.
Palavras-chave: Vaqueiro marajoara. Trabalho. Narrativas de vida.
ABSTRACT: The theoretical and methodological implications treated in this text illustrate the
contribution of the life narratives of five generations of cowboys to the understanding of the
knowledge of the marajoara man in his workspace. In the epistemological approach, the practice of
work is constructed through the voice of these professionals using the listening and collection of
narratives told by themselves, about the work and experiences lived in the region of the fields of
Marajó. The relevance of the use of (self) biographical narratives of the Vasconcelos family cowboys,
in the potentiality and possibility of this methodological instrument in the conduction of research in
Education, memories and Amazonian knowledge: voices of marajoaras cowboys, stands out. This
article aims, therefore, to present the methodology employed in this investigation and the theoretical
assumptions that underlie the study drawn from the reports of these professionals in telling the daily
toil they perform in the fields of Marajó.
Keywords: Cowboy marajoara. Job. Tales of life.
1. As estratégias de condução da pesquisa
Missunga distinguiu, na lonjura, os vaqueiros
a galope rompendo o aguaçal, atravessando as
lagunas, tocando os rebanhos para os tesos. A
luta para salvar o gado se tornava mais difícil.
3
Professora da Secretaria de Estado de Educação/PA e do Município de Concórdia do Pará, bolsista de doutorado
da CAPES. Doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFPA, Orientadora: Profa. Dra. Fátima Cristina da
Costa Pessoa. E-mail: delciauab@gmail.com
4
Professora titular da Universidade do Estado do Pará, Departamento de Língua e Literatura e Programa de s-
Graduação - Mestrado e Doutorado em Educação. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Culturas e Memórias
Amazônicas (CUMA). E-mail: belfares@uol.com.br
5
Professora Associada da Universidade Federal do Pará, Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduão em Letras,
atuando principalmente na interface linguagem, discurso e trabalho. E-mail: fpessoa37@gmail.com
6
Título da dissertação de mestrado, com defesa em 05 de agosto de 2014, a bordo do catamarã Amazon Star,
durante o XVIII Encontro Internacional IFNOPAP/ VIII CAMPUS FLUTUANTE
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Trabalhavam nos atoleiros, famintos,
estropeados, doentes. Os jacarés, os sucurijus,
as arraias tocaiavam.
No Lago Arari, Orminda viu de repente a água
crescer em torno da palhoça e em toda a
beirada. Viu seu rosto refletido ondulando,
naquela água de inundação, seu corpo, seus
cabelos, pareciam morurés e olhava tanto para
as águas que Ramiro falou: Eh, pequena, tu
acaba flechada
7
(Dalcídio Jurandir)
8
.
Os instrumentos metodológicos condutores desta pesquisa têm como norte a História
Oral que permite uma combinação de diferentes técnicas. Os atos, as relações, os sentimentos,
as imagens, as memórias, os eventos, se operacionalizam por meio das narrativas de vida do
vaqueiro marajoara. Estas narrativas como técnicas de coleta implicam pensar nas histórias
familiares, nas atividades cotidianas de trabalho, nas conversas no curral, no tempo da ferra,
na tiração do leite, nas lidas diárias na fazenda,
São técnicas que se articulam com outros mecanismos e as potencializam, como a
observação participante e as conversas de convivência facilitadas pela interação com os
colaboradores da pesquisa que contribuíram com dados não somente restritos às entrevistas,
pois “a minha fonte de informação é geralmente a palavra solta no ar numa conversa informal
ou escutando algum caso” (GALLO, 1980, p. 199), uma atenção para outras escutas, outros
fatos em momentos paralelos às entrevistas narrativas. Ainda que a academia, tenha certa
restrição para essa forma de inserção nas coletas, o registro se deu no decorrer da pesquisa.
A escolha desta trajetória de investigação se deu na perspectiva etnossociológica, que
segundo Bertaux é uma “forma na qual se inscreve a utilização das narrativas de vida” (2010,
p. 23), com amparo na pesquisa de campo. O apoio incidiu no levantamento in loco de
informações que materializam a dinâmica das relações do vaqueiro como um ser social.
Imerso no contexto social do trabalho. Fez-se também o registro documental em imagens das
carteiras profissionais para anexar às fontes adquiridas anteriormente com outras técnicas.
Ressalta-se a diversidade de elementos textuais, observados nesse documento e, que a partir
de uma leitura mais atenta, pode-se perceber os conteúdos dispostos, como os cargos
ocupados pelos vaqueiros e o que mais se pode obter em termos de coleta de dados
correspondentes à pesquisa.
Esta é uma investigação que traz em seu bojo um método de procedimento concebido
por meio da voz do próprio sujeito da pesquisa tendo por base a descrição fundamentada na
história oral, e, conforme o exposto por Bourdieu, se preza por uma “linguagem simples, que
descreve a vida como um caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas [...],
seus ardis, até mesmo suas emboscadas” (1996, p. 183). Não aquela noção científica do senso
comum que a narrativa conduz, da ficção unificadora que discrimina o caráter científico das
histórias de vida como o autor expõe na “Ilusão biográfica”, mas a linguagem que entrelaça os
saberes dos atores sociais no seu contexto sócio-histórico-cultural, imersos no seu tempo e
espaço.
7
Segundo Maués (1995, p. 194-196), flechada é uma ação maléfica dos encantados que vivem no fundo e na
mata. Concebidos como seres perigosos, podem provocar doenças nos seres humanos, além de outros males,
como a “flechada de bicho” podendo atingir qualquer parte do corpo, exceto a cabeça e as cruzes, provocando
fortes dores e, mesmo eventualmente, a morte.
8
(JURANDIR, 2008, p. 338). Extraí este excerto por entender que estabelece uma analogia com a metodologia
desenvolvida durante a pesquisa de mestrado, seja durante o inverno com os campos alagados, chuvas
constantes, as viagens de barco... ou no verão com muita poeira, sol a pino, viagens de carro que sacoleja sem
parar... Em cada uma os encantos e as dificuldades de acesso aos campos do Marajó.
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Os saberes da tradição da vaqueirice em uma transferência constante da atividade do
ramo da pecuária passando de geração em geração por meio de vozes pelas quais se
transmitiram ensinamentos e lições de vida, ao modo da versão do narrador de Benjamin
(1994). Por meio da observação da experiência de trabalho do narrador, às condições de vida
em seu próprio ambiente na lida pelos campos, o que requereu esperar o momento propício
para proceder às entrevistas narrativas em que “a experiência do real toma forma humana,
vida e voz” (BERTAUX, 2010, p. 69), no intuito de se fazer o registro pelo ato de contar.
E, no interesse de se aproximar do formato social onde vivem e labutam os vaqueiros
devem-se registrar as entrevistas e prestar atenção, tal qual recomenda Bosi, às hesitações e
silêncios do narrador. Os lapsos e as incertezas das testemunhas são o selo da autenticidade”
(2003, p. 63-64). A autora recomenda no tópico Sugestões para um jovem pesquisador, do
cuidado dispensado à narrativa, técnica adequada ao estilo biográfico “Quando a narrativa é
hesitante, cheia de silêncios, ele [o pesquisador] não deve ter pressa de fazer interpretação
ideológica do que escutou, ou de preencher as pausas” (BOSI, 2003, p. 64-65).
Cabe ao narrador encadear os fatos à sua maneira, os momentos passados são seus e,
como esta pesquisa evoca lembranças de um velho vaqueiro pertencente à terceira geração da
família Vasconcelos, concorda-se com Bosi diante do fato de que “nos idosos, as hesitações,
as rupturas do discurso não são vazios, podem ser trabalhos da memória” (2004, p. 64, grifo
da autora) onde a autora revela passagens de uma vida que não seguem uma estrutura linear,
não há um encadeamento lógico dos fatos em virtude de que:
A expressão oral da memória de vida tem a ver mais com a música do que
com o discurso escrito. Há componentes musicais inerentes à expressão oral.
Os sons compõem um reino flutuante e o pensamento decompõe a superfície
da água em vagas e ondulações... frases, palavras... (BOSI, 2003, p. 45-46).
E isso só pode ser captado nas gravações e no que se ouve depois e posterior
transcrição, atentando para cada mudança de expressão, ao som, às pausas, do que ficou
retido, o timbre da voz, do silêncio... Para Bertaux é necessário “considerar a operação de
retranscrição como um trabalho em si, destinado a reter não todas as palavras, mas uma
parte das entonações” (2010, p. 90). Nas digressões se evidencia a maneira como as
lembranças são seletivas e das quais se vale para dizer e manter aquilo que convém. Uma
seleção oportuna a serviço da construção da identidade do sujeito. São acontecimentos
recordados de uma história de vida em que uma seleção ao qual Joel Candau qualifica
como estética, pois,
permite ao narrador transformar a seus próprios olhos a narrativa de si
próprio em uma “bela história”, quer dizer, uma vida completa, rica em
experiências de toda natureza. Nesse sentido, todo aquele que recorda
domestica o passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua
marca em uma espécie de selo memorial que atua como significante da
identidade. (CANDAU, 2012, p. 74).
Mas, entre o chão e o mundo das ideias há um limite da construção teórica da
experiência de vida. Assim, o método qualitativo da pesquisa com base metodológica da
história oral é descrito por Lozano como:
Um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e
níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que
permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de
processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e cnicas
precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um
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papel importante. Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela
oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e na versão que
brotam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais.
(LOZANO, 1996, p. 16, grifo do autor).
Em se tratando de pesquisa qualitativa, mais reflexão e interação com o sujeito
participante uma vez que o interesse maior é compreendê-lo enquanto membro de uma
sociedade com valores, crenças, costumes, hábitos e práticas. O que significa, literalmente,
“meter o pé na lama”, ou a variação “meter o pé na várzea”, também pertinente, para conhecer
o homem dos campos do Marajó, como expõe Giovanni Gallo
Só vivendo aqui, em contato com a realidade do dia a dia, é possível
descobrir o que de fato é novo aqui, exclusivo. Não somente a natureza
(bichos e flores se encontram em toda parte): é o relacionamento, uma
dimensão nova, uma espécie de trama de conexões misteriosas que associam
homens e coisas, formando um mundo à parte, fora dos padrões, das
categorias gastas e habituais. (GALLO, 1980, p. 29).
Mas as leituras intermitentes não permitiam seguir o cronograma devidamente
planejado. Apesar das bases conceituais serem consistentes, as demais leituras
complementares se embaraçavam ao correlacioná-las com o objeto em face da construção, da
vivência o que emerge da experiência do vaqueiro do Marajó. Atender a premissa “só se
escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar” (GOLDENBERG, 2004, p. 14)
ainda estava longe para se concretizar de fato, por se tratar de um percurso que poderia ser
alterado a cada etapa.
A recomendação de Sánchez Gamboa acerca dos métodos na pesquisa em educação e
suas implicações epistemológicas suavizaram os anseios do percurso investigativo: “querer
traçar o caminho, antes de definir os pontos de partida e de chegada, de conhecer as condições
do trajeto, os recursos e os meios, é, como diz a expressão popular, ‘colocar a carroça na
frente dos bois” (2012, p. 65, grifo do autor). Daí a relevância dos estudos de Fares, que
explica essa intensa ocorrência ao traçar cartografias para representar o espaço onde o
vaqueiro vive e também se desloca visto que “o mapa iconiza o espaço [e] arquiva
conhecimentos de um grupo humano, memoriza a história, articula os espaços em uma
globalidade, projeta e direciona um itinerário. Renega o nômade, toma partido pela
estabilidade” (2011, p. 83). A intenção era que, de fato, se pudesse compreender e analisar o
fenômeno com foco no percurso metodológico desde o ponto de partida ao ponto de chegada,
a fim de uma compreensão mais elaborada do objeto.
Porém, o que se entendeu de imediato foi que as múltiplas atividades do vaqueiro
marajoara movimentaram o percurso da pesquisa. Tornava-se necessário mobilizar estratégias
para responder, nesse corpus, às indagações inerentes à pesquisa e estabelecer vínculos com
os processos de constituição, transmissão de conhecimentos e saberes e as aproximações com
a educação não formal que se constrói no âmbito da sociedade e da cultura marajoara. Febvre
auxilia o entendimento desse processo:
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles
existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos,
se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-
lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com
palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e
ervas daninha. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras
por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra,
com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o
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homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem. (FEBVRE, 1985, p. 249)
Nesse âmbito, faz-se recorrência ao preceito de Denise Simões Rodrigues, pois que é
“fundamental estabelecer como ponto de partida a elucidação do conceito de cultura, até
mesmo para entender as postulações dos atores sociais em busca do espaço socialmente
reconhecido” (2013, p. 14). Um discurso inicial acerca do estudo de cultura requer amparo
conceitual direcionado ao interesse no homem enquanto ser produtor de cultura, conceito que
Thompson rubrica com cuidado especial:
Embora possa haver pouco consenso em relação ao significado do conceito
em si, muitos analistas concordam que o estudo dos fenômenos culturais é
uma preocupação de importância central para as ciências sociais como um
todo. Isto porque a vida social, não é, simplesmente, uma questão de objetos
e fatos que ocorrem como fenômenos de um mundo natural: ela é, também,
uma questão de ações e expressões significativas, de manifestações verbais,
símbolos, textos e artefatos de vários tipos, e de sujeitos que se expressam
através desses artefatos e que procuram entender a si mesmos e aos outros
pela interpretação das expressões que produzem e recebem. Em sentido mais
amplo, o estudo dos fenômenos culturais pode ser pensado como o estudo do
mundo sócio histórico constituído como um campo de significados. Pode ser
pensado como o estudo das maneiras como expressões significativas de
vários tipos são produzidas, construídas e recebidas por indivíduos situados
em um mundo sócio histórico. Pensado desta maneira, o conceito de Cultura
se refere a uma variedade de fenômenos e a conjunto de interesses que o,
hoje, compartilhados por estudiosos de diversas disciplinas. (THOMPSON,
1995, p. 165)
Em meio à complexidade da metodologia do trabalho de campo, a condução
investigativa foi refeita e, dentre outros autores que auxiliaram esse processo, destaca-se a
pertinência das leituras de Bertaux para pontuar o trabalho com narrativas de vida, pois “elas
constituem um método que permite estudar a ação durante seu curso” (2010, p. 12, grifo do
autor). E as palavras se constituíram em fontes para a análise das narrativas de vida com
abordagem (auto)biográfica. O uso e o potencial das histórias de vida assim como as críticas a
elas associadas se compuseram em relevante recurso das interações originadas durante o
processo investigativo. Como, então, sistematizá-las?
A proposta se fundamentou nas entrevistas narrativas de Bertaux (2010, p. 80-81)
encorajando o vaqueiro a contar sua vida com temas ou assuntos que fluíssem livremente e,
atenta a um eventual assunto diferenciado, que por ventura surgisse, ter habilidade para
introduzir questões com possibilidade de exemplos, confirmando o exposto por ele. É certo
que um roteiro com listas de questões, previamente elaboradas, norteia o contexto de ação,
mas, neste caso, o recurso a Sônia Freitas (2002) com adaptação do questionário preparado
pela autora em História Oral: possibilidades e procedimentos, não se obteve o resultado, pois
ao aplicar o questionário tinha-se a impressão de que o vaqueiro estava peiado. A entrevista
com tipos de perguntas estruturadas segue um roteiro padronizado, com perguntas
previamente estabelecidas, com o objetivo de obter, dos entrevistados, resultados uniformes
às mesmas perguntas” (OLIVEIRA; FONSECA; SANTOS, 2010, p. 45), porém, foi possível
perceber que o roteiro pré-estabelecido apresentou falhas, era um roteiro engessado. Coitado!
O vaqueiro acostumado às conversas informais, não sabia o que responder. Em um intervalo
da gravação da entrevista, ele já meio aflito perguntou: O que a senhora quer que eu
responda?”. Na ânsia de ajudar, nesse momento da pesquisa, ele temia pouco contribuir por
achar-se aquém do esperado. Um profissional que “não é consciente da riqueza de que é dono
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e ao mesmo tempo artífice. Não querendo vender bagaço, se tranca”, como diz Gallo (1980, p.
173).
A busca de significados inerentes ao exercício da atividade pecuária e de traçar os
saberes desse profissional dos campos do Marajó se deu por meio de levantamento da
narrativa de vida como procedimento metodológico, e, a partir daí, um recorte biográfico das
fontes orais por considerar que a vivência se reveste da tradição. Nesse caso, a ação de contar
É costurada em torno da dimensão temporal que significado as
fases da infância, juventude, idade adulta etc. Através da ficção e
criatividade do narrador, esta biografia, objetivada pela fala, vai se
configurando e ganhando existência própria a partir do amálgama,
muitas vezes inconsciente ou não, que representa o conjunto de
experiências vividas (ATHAÍDE, 2006, p. 313).
Por isso, a opção metodológica com narrativas de vida de vaqueiros, dentre outras
técnicas de pesquisa, e isso implica um processo de compreensão dos fatos, das relações
sociais, das possibilidades de imbricar a diversidade de saberes que existem na cultura
marajoara.
2. A revisão: as buscas sobre o assunto em campo
Importante para este momento um mergulho inicial em trabalhos que contemplem a
temática relacionada ao vaqueiro, ou pelo menos visibilizam sua presença e importância. Os
títulos dos trabalhos por si constituíam um convite para que se fizesse uma leitura para
além do resumo devido à similitude com aspectos da educação, saberes, cultura e memória
do/no Marajó. Por se tratar de uma investigação com foco nos sujeitos, especificamente os
vaqueiros do Marajó, entende-se que uma leitura superficial dos textos não seria suficiente,
que era preciso ir mais além, como recomenda Paulo Freire em relação ao sujeito e ao objeto:
Daí a necessidade que temos, de um lado, de ir mais além da mera captação
da presença dos fatos, buscando assim, não a interdependência que
entre eles, mas também o que há entre as parcialidades constitutivas da
totalidade de cada um e, de outro lado, a necessidade de estabelecermos uma
vigilância constante sobre nossa própria atividade pensante. (FREIRE,
1982, p 135-136)
Um pensar que, segundo Bosi “é um relacionamento entre sujeito e objeto. É nessa
relação com o objeto que nos faz passar da opinião para o conhecimento [e] deve voltar-se
para o mundo e prover com objetos os seus conceitos” (2003, p. 121),. A sinuosidade dos rios
da Amazônia, por exemplo, requer de quem os trafega conhecimento e atenção constantes.
Por isso, os navegantes que aqui aportam, independente dos conhecimentos científicos e
tecnológicos dos quais dispõem, precisam da presença de um prático que os conduza pelos
canais e atraque a embarcação em segurança.
A maneira desse procedimento se também na construção do objeto de pesquisa,
com a valorização das práticas produtivas de um conhecimento focado no universo particular
com evidente estímulo à reflexão sobre os aspectos ligados aos saberes dos vaqueiros do
Marajó. O que se pode averiguar nas Teses, Dissertações, e Projetos de Pesquisa delineados a
partir de interlocuções e investigações que incidiram sobre o sujeito na práxis.
Assim, importa pesquisar o modo de vida do vaqueiro, que inclui, segundo Bourdieu
(1996), uma identidade civil, como individualidade socialmente constituída pelas relações
familiares e comunitárias, moradia, formas de sobrevivência, alimentação, lazer, atividades no
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campo, como cuidar do gado, encontros e enfrentamentos com perigos do mundo natural ou
sobrenatural, aprendizagem e ensinamentos dos saberes da experiência, entre outros aspectos
cotidianos, vivências e experiências a serem narradas pelos próprios vaqueiros. Uma
investigação que pretendeu também fortalecer a linha de pesquisa Saberes Culturais e
Educação na Amazônia, do Centro de Ciências Sociais e Educação/ Programa de Pós-
Graduação em Educação/UEPA e juntar-se às matrizes escritas no projeto A épica do
vaqueiro marajoara memória, narrativa e biografia no intuito de fomentar uma reflexão
sobre a importância da recuperação da memória imaterial e revigorar a ideia de que as
narrativas de vida são importantes produtores de conhecimentos para as ciências humanas,
letras e áreas afins, uma vez que, neste caso, biografar a história de um sujeito torna-se uma
atitude interdisciplinar urdida pela voz com que narram os vaqueiros do Marajó.
Dessa forma, os saberes em torno do vaqueiro costumam se revelar em pesquisas
diversas segundo os objetivos do pesquisador e a forma da abordagem em relação ao tema. Na
intenção de responder aos questionamentos suscitados é natural proceder à descrição e
caracterização do universo cultural marajoara e, a partir das análises impetradas em pesquisas
realizadas se expressam formas de se pensar e de ressignificar as atividades cotidianas do
vaqueiro, embora as atuais relações entre as formas de conhecimento precisam contemplar
outros modos de conhecer para assumir e reconhecer, de acordo com Santos
O perfil epistemológico das relações sociais não é fornecido por uma forma
epistemológica específica, nomeadamente a forma epistemológica do espaço
mundial (a ciência), mas sim pelas diversas constelações de conhecimentos
que as pessoas e os grupos produzem e utilizam em campos sociais
concretos. (SANTOS, 2003, p. 326)
Importa socializar, atrelar a esse conhecimento os saberes, as experiências que
revelam outros olhares para a cultura marajoara e se um passo para o reconhecimento da
identidade local com suas singularidades e similaridades. Como era de se esperar, durante o
levantamento da produção acadêmica há muitos trabalhos que tocam a região. Mas o objetivo,
por ora, não é fazer um levantamento geral da literatura e sim verticalizar os que contemplam
as histórias de vida dos vaqueiros marajoaras.
Então, o jeito é seguir a viagem pelo arquipélago do Marajó, e, durante a travessia,
refletir a respeito da capacidade de realização deste homem dos campos, das possibilidades
relativas ao seu potencial enquanto indivíduo de força e influência e não se apoiar em
conjeturas do que ele tem de diferente. Na bagagem, o equipamento necessário e a
disponibilidade para viver essa experiência com olhos e ouvidos atentos às diferentes
aprendizagens que cada indivíduo traz em “um lugar onde todos sabem tudo” (GALLO, 1980,
p. 22) e praticar a seleção, dentre os muitos itens que emergirem, segundo a rota de estudo
que cabe realizar no percurso traçado.
3. A seleção: da liberdade dos campos ao corredor da caiçara
9
Muitas foram as viagens às fazendas do Marajó. Em cada uma delas um aprendizado
se retinha por meio das conversas, gestos, produção de imagens, registro gravado e escrito,
gravação de vídeos, na observância das vivências do vaqueiro do Marajó. Um cenário tendo
em vista à “educação como cultura” de Brandão na possibilidade de que:
9
O sentido do termo caiçara aqui se refere ao cercado de madeira à margem de um rio ou igarapé navegável para
embarque de gado. As reses estão, inicialmente, em um espaço amplo e para embarcá-las passam pelo corredor
da caiçara que só comporta um animal de cada vez.
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Viver uma cultura é conviver com e dentro de um tecido de que somos e
criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as cores o desenho do bordado e
o tecelão. Viver uma cultura é estabelecer em mim e com os meus outros a
possibilidade do presente. A cultura configura o mapa da própria
possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder em si
mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa e a
outra são possíveis. (BRANDÃO, 2002, p. 24)
Panorama cuja preocupação epistemológica tem a tarefa de examinar o objeto a ser
investigado no lugar que se atribui ao sujeito e entender a realidade no momento que se torna
objeto a ser conhecido. A busca de novos conhecimentos, de novas interpretações, de outras
concepções de realidade encaminhou a pesquisa no início de 2002, à Fazenda Tapera, quando
se procurava conhecer mais sobre o léxico do vaqueiro marajoara e proceder à coleta para o
material de pesquisa no Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura em Letras.
Desde os primeiros contatos ocorridos desde 1994, as viagens às fazendas se tornaram
mais frequentes como lugar para interagir e coletar testemunhos de uma época que revelaram
e ainda revelam sentimentos, valores, costumes, crenças, conhecimento, a vida e as relações
culturais que se desenvolvem e se articulam em linguagem diferenciada, elementos
condutores das práticas sociais dos habitantes nos campos do Marajó. Uma linguagem que, no
estudo atual, difere da pesquisa da graduação, uma abordagem linguística e, agora, emerge em
outro viés vinculado à memória e à história oral, em costumes recém-criados ou que
permanecem com estrutura e significados próprios e contribuem para a tessitura da identidade
marajoara.
No percurso de uma das viagens em 2014, com saída de Soure, a intenção era de
observar o trabalho dos vaqueiros nas atribuições de um embarque de gado e, aproveitar a
oportunidade para falar com eles sobre a função que exercem na fazenda onde trabalham.
Após longa travessia pelo Rio Paracauari
10
, em canoa que faria o transporte de uma venda de
gado, a chegada ao porto da fazenda e a espera até embarcação atracar e poder subir com
segurança a escada que levava à caiçara. Uma breve caminhada pelo assoalho de madeira até
o encontro com o proprietário da fazenda, que estava no aguardo da visita, e seguimos
juntos até um reservado onde ficava a balança onde se pesaria o gado.
Às proximidades de onde estávamos era possível avistar na direção de uma porteira
nove vaqueiros montados em seus cavalos que ora entravam pelo meio do gado, ora
contornavam a boiada, mas não havia nenhum avanço na caminhada, nem de vaqueiros, nem
de animais. Indaguei o porquê da demora, uma vez que estávamos havia mais de uma
hora e nada de saírem do lugar. O fazendeiro falou da dificuldade de trabalhar com gado
branco
11
e que era mais difícil reunir todas as reses, pois volta e meia fugiam da malhada, o
que não aconteceria se fosse com búfalo, animal mais dócil e de fácil manejo. Uma pausa na
conversa porque havia movimento lá onde estava o gado.
E vimos quando, de repente, uma rês saiu em alta velocidade e ganhou novamente os
campos. Imediatamente, um vaqueiro foi ao seu encalço e a reconduziu à malhada. Quando os
vaqueiros tangendo o gado se aproximaram da caiçara houve atenção mais acentuada para a
escuta atenta das ações que aconteciam ao redor: o som dos gritos, o estalar da ngua, o
balançar das muxingas
12
e uma série de recursos que os vaqueiros empregavam para incitar o
gado a caminhar. E tudo estava tranquilo até que logo à entrada do curral, certos que
10
Rio Paracauari ou Igarapé-Grande “banha a cidade de Soure e Salvaterra tendo como afluente, pelo lado
esquerdo geográfico, o Rio do Saco, com seus afluentes Amparo, Bom Jardim, Prazeres e São Sebastião; e pela
margem direita, os Rios Sericari, Caranaoca, Cachoeira e Aturiá” (TEIXEIRA, 1953, p. 4).
11
O gado branco ou Nelore é uma raça bovina (Zebu) originária da Índia. Os primeiros exemplares da raça
chegaram ao Brasil no final do século XVIII, e se tornaram a raça de gado predominante no rebanho brasileiro.
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Tipo de chicote entrelaçado por tiras de couro ou nylon e, normalmente, usado para tocar ou castigar animais.
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estavam da conclusão do serviço, os vaqueiros liberaram o grupo formado por bois de rede
13
,
e, novamente um animal fugiu. Dois vaqueiros saíram em perseguição, mas não conseguiram
trazê-lo até que mais dois companheiros levaram os bois de rede para ajudá-los e,
conseguiram, finalmente, entrar com todas as reses em um dos cercados do enorme barracão.
A respeito da precaução dos vaqueiros a ter um olhar sempre atento ao rebanho para
perceber se algum animal mais esperto querendo escapar do cerco e voltar à liberdade dos
campos, Barroso assim comenta:
Apesar da vigilância que os vaqueiros exercem sobre a malhada, algumas
reses na confusão, conseguem iludir a atenção, pela sua rapidez; saindo em
desabalada carreira. Os vaqueiros (quase sempre dois) saem-lhe logo ao
encalço. É bonito presenciar-se aquele “galope” doido, nessas perseguições.
A rês empina a cauda, abaixa a cabeça e vai rompendo o algodoal [...] e tudo
o que encontra pela frente, fazendo caminho para os seus perseguidores. O
vaqueiro joga o laço, mas é infeliz; a corda esbarra num cipó, num galho e
desvia-se; não desanima, colhe-a e continua a persegui-la, embora só a
alcance a alguns quilômetros. A rês vendo que vai perdendo terreno, cansada
e levada ao extremo a sua cólera, para bruscamente e enfrenta-os; mas estes
sempre vigilantes, mudam também de direção antes que seja tarde. [...].
Lançam-na com duas cordas, um vem na frente puxando-a, outro atrás para
que não chifre o seu condutor. E assim é reconduzida novamente à malhada.
(BARROSO, 1953, p. 165, grifo do autor)
E quando os vaqueiros se abeiravam a cerca, com o animal brabo dominado, tinha-
se a intenção de chegar mais perto e gravar a cena em vídeo. Seria interessante captar esse
momento dos bois de rede sendo conduzidos à malhada. No primeiro momento essa
aproximação não foi possível porque, embora fosse gado manso, era grande o risco de os
animais ficarem nervosos e de repente avançarem sobre nós. No segundo momento, a opção
foi de passar entre os frechais
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da cerca, por onde entrariam os animais, e escalar um a um
até chegar lá no alto do cercado onde se ficou à espreita para os tão esperados cliques, mas se
tratava de gado arisco e, novamente, a tentativa não deu certo, eles entraram depois que o
local ficou livre dos curiosos que estavam interrompendo o andamento dos trabalhos.
Algo percebido e digno de nota é a solidariedade entre os vaqueiros como se percebeu
no momento que uma rês transpôs os cercados e, eles, dotados de extrema habilidade,
seguiram imediatamente galopando ao encalce do animal. Uma atitude que requer destreza e
confiança no companheiro para atuarem de comum acordo até conseguir capturar o animal.
Pode-se então notar que os vaqueiros incorporam suas próprias experiências as do grupo com
o qual convivem em lições de solidariedade e companheirismo por meio do ofício que os une.
Um exercício que implica troca como fator de crescimento cultural e de enriquecimento
mútuo, pois o contato nesses ambientes ocorre em meio a muita gritaria, risos, gestos e, nesse
caso, a tomada de decisão imediata para sair ao encalce do animal e obter êxito na tarefa, com
cuidado e atenção visando a proteger a si e ao companheiro de serem vítimas de um acidente
no trabalho.
Na ânsia de captar momentos dos vaqueiros em exercício pode-se acompanhar a
entrada das reses comercializadas no corredor da caiçara, e elas seguiram uma a uma por
aquele estreito corredor à custa de muito grito, cutucadas nos quartos até a balança. E,
conforme a arrumação do gado na entrada daquele cercado restrito, eles são pesados em lotes
de três, cinco, ou apenas um animal. Como são animais de venda, vão direto do porto da
13
Boi de rede, segundo Fabrício (5ª geração de vaqueiros da família Vasconcelos): “é boi manso, uns trinta bois,
mas tem que ser boi mesmo, animal castrado desde pequeno para esse tipo de serviço”.
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Peça resistente de madeira usada em posição horizontal para cercar, nesse caso, currais e caiçaras.
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fazenda para o matadouro. Um procedimento observado antes do gado entrar na embarcação é
que os vaqueiros ferram o animal com a marca do comprador, e quando indagados sobre essa
atitude responderam para não haver troca no momento da matança que o couro, com a
marca registrada no lombo, possibilita a identificação do dono atual.
E o árduo trabalho dos vaqueiros continuou até colocarem todas as reses na canoa.
Agora vaqueiros e tripulantes agindo em parceria: cutucar os animais no estreito corredor da
manga para seguirem até a cabeceira da caiçara, pés e mãos articulados em busca de apoio
para passar uma corda
15
em torno do chifre do animal que depois é puxado para cima por duas
talhas por onde a corda desliza. Para isso, é preciso da força de três pares de mãos para puxar
a corda e mais um par de mãos experientes, do chamado rabeteiro, para controlar a corda na
subida e descida do animal. Na subida, o deslocamento do animal da caiçara para o alto,
uma altura proporcional ao seu tamanho, até a descida ao porão da embarcação, esta ação é
controlada pelo rabeteiro auxiliado por um tripulante que precisa retirar o estropo da cabeça
do animal
16
e assim dar sequência ao trabalho.
Concluída essa parte do serviço pode-se, então, retornar a Soure, e, lá chegando,
desembarcar as reses que eram novamente suspensas no ar e depois soltas no curral do
matadouro municipal. Uma dinâmica de trabalho que ainda faz parte da cultura marajoara.
4. Na conclusão, as experiências e saberes na dinâmica do costume e da cultura
tradicional
É no dia a dia, no embate com os animais, na prática em domá-los, no
companheirismo entre os colegas, na consideração com a família, no respeito ao outro, no
comportamento, e no que o vaqueiro conta sobre os seus afazeres no campo que se
concentram estes estudos.
Nesta Era referente ao capítulo metodológico se juntaram as experiências de vida e
trabalho do vaqueiro, por se tratarem de aspectos relacionados à memória, aos saberes, à
execução das atividades em espaços que trazem as marcas de uma identidade profissional.
Essa atitude demonstra, segundo Bosi que “há, portanto, uma memória coletiva produzida no
interior de uma classe, mas com poder de difusão, que se alimenta de imagens, sentimentos
ideias e valores que dão identidade àquela classe” (1994, p. 18). Atenta às especificidades
inerentes ao vaqueiro, esta pesquisa se propõe a associar experiências e saberes, herança dos
antepassados, a fim de que possam transmiti-las às futuras gerações. Em Benjamin a
memória cria a corrente da tradição que passa um acontecimento de geração em geração”
(1994, p. 211), e isso abarca uma pluralidade de experiências cotidianas. Zumthor compartilha
da mesma opinião:
A memória implica um saber coletivo, ligado à preservação de laços sociais
atualizados através de rituais para assegurar as tradições, sobretudo as de
fatos ligados à cultura oral, visto que para o poeta tradição e memória são da
ordem da coletividade na medida em que instituem modelos, padrões de
comportamento mantendo a coerência, que a memória do grupo tende
assegurar a coerência de um sujeito na apropriação de sua duração: gera a
perspectiva em que se ordena uma existência e, nesta medida, permite que se
mantenha a vida. (ZUMTHOR, 1997, p. 13-14)
15
Essa corda é chamada de estropo, um acessório utilizado para trabalho em altura que serve para içar o animal.
16
Quando o gado não tem chifre, seja por motivos genéticos ou pela extração, é chamado mocho e, nesse caso, o
estropo é passado atrás da orelha e por baixo do queixo do animal.
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No entendimento de que a cultura faz parte do existir no mundo na comunidade
rural onde vive o vaqueiro, registros de que toda sociedade comporta mecanismos e por
meio deles, segundo Silva, se transmite e se recria culturas
Eles constroem, se inserem ou se apropriam de seus ambientes pautando-se
por saberes acumulados e configurados por meio do trabalho e de outros
significados simbólicos que atribuem a determinados meios e que
transcendem a dimensão do trabalho. (SILVA, 2008 p. 55).
E assim, cada recurso empregado na condução da pesquisa constituiu a base para
realização deste estudo com observação atenta à predominância da voz, nas entrevistas
narrativas, a se entrelaçar em diversas áreas do conhecimento. Na descrição das lidas em
campo, nos saberes transmitidos pelas gerações, na pesquisa qualitativa, no traço cartográfico,
está o profissional vaqueiro imerso em uma sociedade com costumes e tradições. No ato de
contar se expressam os saberes da profissão, a labuta em campo e as tramas tecidas nessas
narrativas projetam estratégias que visam à compreensão dos fatos, às histórias de vida
(com)partilhadas. E que a manifestação da voz alcance um campo fértil, um espaço propício
as mais diversas formas de práticas educativas em torno da experiência de vida e de trabalho
do vaqueiro marajoara.
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[Recebido: 20 jan 2019 – Aceito: 19 jun. 2019]