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O ENSINO DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO: POSSIBILIDADES DE
DIÁLOGOS COM CULTURAS E MODOS DE VIDA
LITERATURE TEACHING IN THE COUNTRY FIELD EDUCATION:
POSSIBILITIES OF DIALOGUES WITH CULTURES AND WAYS OF LIVING
Sílvia Gomes de Santana Velloso (PPGLITCULT UFBA)
1
Resumo: Discute-se o ensino de literatura na Educação do Campo, especialmente, tendo em
vista os diálogos culturais e identitários que o texto literário pode estabelecer com os sujeitos
no processo de formação leitora
2
. O Campo, de acordo com Arroyo (2003), é constituído de
uma potência identitária, ou seja, de sujeitos que possuem um perfil diverso: “trabalhadores,
camponeses, mulheres, negros, povos indígenas, jovens, sem-teto... Sujeitos coletivos
históricos, se mexendo, incomodando, resistindo. Em movimento” (ARROYO, 2003, p.33), a
qual nega e repulsa qualquer proposta de ensino que se mostre homogênea e hierarquizante.
Nesta perspectiva, espera-se que este texto contribua para se pensar no ensino de literatura
como uma ação que deve ocorrer em intercâmbio com as experiências dos sujeitos sociais.
Palavras-chave: Literatura. Leitura. Ensino. Educação do campo.
Abstract: This article discusses the Literature teaching in the country field education,
especially, bearing in mind the cultural and identity dialogues that the literary text can
establish with the subjects in the reading training process. The country field, according to
Arroio (2003), consists of an identity power, that is, it consists of subjects who have a diverse
profile: “workers, peasants, women, black people, Indians, young people, homeless people.
Historical collective subjects, moving, bothering, resisting. In motion” (ARROYO, 2003, p.
33), who denies and repulses any teaching proposal, that proves to be homogeneous and
hierarchichal. In this perspective, it is expected that this text contributes to thinking about
literature as an action that should take place in exchange with the experiences of social
subjects.
Key-words: Literature. Reading. Teaching. Country Field Education.
1
Doutoranda em Literatura e Cultura - PPGLITCULT Universidade Federal da Bahia UFBA; Mestra em Crítica
Cultural Pós Crítica, na linha de pesquisa Letramentos, Identidades e Formação de educadores Universidade
do Estado da Bahia UNEB/Campus II Alagoinhas. E-mail: gsantana20@yahoo.com.br.
2
É importante destacar que, ao referir-me à expressão formação leitora, faço menção ao trabalho com a
leitura em âmbito escolar, compreendendo, entretanto - é importante dar ênfase a esta ideia que, ao chegar
à escola, o sujeito traz consigo uma enorme bagagem de leituras resultantes de suas vivências, do convívio
social, de suas experienciações. Faço questão de salientar tal ideia, para não correr o risco de trazer
sustentação a uma concepção de formação leitora como sinônimo de escolarização, desconsiderando as
experiências anteriores ao acesso do sujeito à escola. Seria interessante utilizar outro termo, então? Algo mais
abrangente que alcance esta concepção alargada de leitura para a qual outros autores também apontam? Uma
questão para se pensar.
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Introdução
Este trabalho discute o ensino de literatura, especialmente na Educação do Campo,
como uma ação que deve ocorrer em diálogo com as identidades, culturas e modos de vida
dos diferentes sujeitos. Em “A Gaia Ciência” cujo título pode ser traduzido como “alegre
saber”, Nietzsche convida o leitor, num discurso bastante poético, a pensar sobre como a
noção de ciência como sendo um campo soberano, que vem se construindo ao longo de um
percurso histórico, às vezes se apresenta acima das experiências humanas, afastando-se,
assim, de alguns processos importantes de interação com a vida.
Corroborando essa ideia, ao elaborar o texto de apresentação da referida obra de
Nietzsche, Ciro Mioranza, conhecedor das possíveis intenções desse filósofo da linguagem,
diz não ter dúvidas de que a experiência de vida é uma enorme fonte de conhecimento. A
despeito disso, o autor deixa registrado o quanto a ciência utiliza-se desse saber, da
observação histórica do comportamento humano, para criar e ditar regras comportamentais,
instituindo leis que ignoram as experiências humanas.
Fora com base nas leituras de Nietzsche, o qual pode ser considerado um dos maiores
autores e intérpretes da ciência, principalmente da linguagem, mas também de muitos
pesquisadores, como Sodré (2017) e Martins (2002) - importantes teóricos que, igualmente,
ou, talvez, de modo ainda mais amplo, que têm se proposto à pesquisa sobre diferentes
culturas, mormente as culturas africanas, m pensando sobre a construção do conhecimento,
nas perspectivas da descolonização e da decolonialidade, dos corpos dissidentes - que me
propus a escrever este texto.
Iniciei minha trajetória docente como voluntária na alfabetização de adultos, na
comunidade em que vivi toda a infância e adolescência, o distrito de Passé - Candeias, na
Bahia, Brasil. Um local com poucos recursos financeiros, de maneira que muitas pessoas
utilizam-se de variadas formas de trabalho para sobreviver, como o plantio e a
comercialização de bananas; a pesca e a mariscagem esta última gerida, mormente, por
mulheres. Hoje, tenho de modo mais preciso a noção da potência cultural, identitária e de
modos de vida que marca aquela comunidade. Uma potência que se reinventa no percurso
histórico, social e cultural, sempre existindo e resistindo.
Exercendo formalmente a docência na Educação básica, desde o ano de 2007, transitei
por vários caminhos dessa etapa educacional, desde a Educação de Jovens e adultos por
qual tenho grande paixão - ao Ensino médio, no campo e nas periferias urbanas. Em 2015, fui
aprovada num concurso público para atuar na docência do componente curricular Língua
portuguesa, num município da região metropolitana de Salvador, na Bahia. Tendo em vista
que o concurso estabeleceu a distribuição das vagas entre sede e zona rural, fui indicada a
atuar zona rural. A princípio rejeitei, devido à distância, mas resolvi permanecer. Lembrei-me
de que também vivi no campo e das dificuldades que os sujeitos enfrentam para terem uma
educação minimamente digna, que respeite seus modos de vida e produção. Fui destinada a
uma escola localizada numa comunidade tão rica cultural e identitariamente quanto o local
onde passei parte da minha vida, em Candeias, na Bahia.
compreendia que teria muito trabalho pela frente, visto que não caberia reproduzir
um currículo urbanocêntrico na educação de sujeitos que têm outras experiências de vida.
Reafirmo que a educação precisa ocorrer em diálogo com a multiplicidade que constitui as
pessoas. Nas atividades que envolvem a leitura, sobretudo a leitura literária, sempre tenho
buscado textos que dialoguem com os sujeitos (jovens e adolescentes, negros, em sua maioria;
ribeirinhos, trabalhadores do campo, filhos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, dentre
outros) que adentram as salas de aula, como as produções dos (as) /as escritores/as das
literaturas negra e indígena: Cristiane Sobral, Oliveira Silveira, Alessandra Sampaio, Daniel
Munduruku, Eliane Potiguara, dentre outras potências literárias.
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Trata-se de escritores (as) que, em suas obras literárias, assumem suas identidades
negras e indígenas, por exemplo, de modo positivo, afirmativo, questionando discursos
opressores que ferem os múltiplos modos de ser e existir das pessoas, o que possibilita aos
(às) seus (suas) leitores (as) a construção de uma autoimagem nesta mesma perspectiva.
Como fazer ciência é valorizar e dialogar com a vida, retomando as ideias de
Nietzsche, não poderia me furtar ao relato da minha trajetória profissional, que me
proponho a discutir ensino de literatura em diálogo com as experiências humanas, com a vida.
Essas vivências me permitiram pensar e tensionar o que vem a ser a Educação do campo.
Quem são os sujeitos desse espaço? Quais currículos têm sido ofertados às escolas do campo?
Esses currículos se propõem a dialogar com as identidades e modos de vida dos campesinos?
Como isso ocorre? São currículos construídos a partir de um olhar externo sobre o campo, ou
no campo, com a participação de seus atores?
São algumas das indagações propostas neste trabalho, o qual é parte de uma pesquisa
de doutorado, em andamento, que investiga a formação de leitores em contextos de Educação
do Campo. Nesta perspectiva, serão utilizados como referenciais teóricos autores, tais como,
Arroyo (2003), que tem discutido o campo como esta potência cultural e identitária -
abordada nesse texto - e, neste sentido, a Educação do campo como um processo cujos
sujeitos a que se destina: crianças, jovens, adultos, adolescentes e idosos, ribeirinhos,
quilombolas, mulheres negras e tantos outros negam e repulsam de alguma maneira quaisquer
modelos de educação que os escravize ou os ignore. Serão discutidos, também, autores como
Martins (2002), Sampaio (2016) e Silveira (1998), para o diálogo sobre leitura literária e
experiências humanas, dentre outros.
Espera-se que este texto contribua na reflexão sobre a necessidade de interação entre o
ensino de literatura e as experiências dos sujeitos sociais.
Literatura e experiências humanas
Na introdução ao texto performance, exílio e fronteira, Graciela Ravetti e Márcia
Arbex discorrem a respeito de temáticas caras, sobretudo em tempos em que se tenta
cristalizar ideias e impor movimentos ao corpo, aos sujeitos, ao que é dinâmico e diverso,
mormente por ser humano. As autoras permitem ao leitor refletir que a fronteira une,
diferencia e acolhe o diverso e, ao mesmo tempo, aquilo que se opõe. “A fronteira, linha de
demarcação de um território, real ou simbólico, é também lugar em que se desafia a liberdade
e em que se abre espaço para a criatividade” (RAVETT E ARBEX, 2003).
Consonante as ideias dessas autoras, na observação das relações entre memória, corpo
e performance, Leda Martins escolhe como corpus de análise os ritos de congado, que,
segundo ela, correspondem a uma das formas mais expressivas da cultura afro-brasileira. Na
análise desses ritos, sobretudo nas Américas, a autora busca mostrar como o legado ancestral
africano se fixa e se movimenta na diáspora. Trata-se de um movimento “espiralar”, em que
as performances da voz e do corpo, especialmente, vão traduzindo modos de resistência e
estratégias de manutenção de uma cultura que produz vida, que é vida e traz sentido a muitas
vidas humanas. Como exemplo dessa reflexão, Martins presenteia o leitor com trechos de um
ritual de congado
3
realizado no estado de Minas gerais:
3
“Os Congados, ou Reinados, são um sistema religioso alterno que se constitui no âmbito mesmo da
encruzilhada entre os sistemas religiosos cristão e africanos, de origem banto, através do qual a devoção a
certos santos católicos, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês,
processa-se por meio de performances rituais de estilo africano, em sua simbologia metafísica , convenções,
coreografias, estruturas, valores, concepções estéticas e na própria cosmovisão que os instauram” (MARTINS,
2002, p. 74).
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Cânticos do congado
Zum, zum, zum
lá no meio do mar.
É o canto da sereia
Faz a gente entristecer.
Parece que ela adivinha
O que vai acontecer.
Ajudai-me, rainha do mar
Ajudai-me, rainha do mar
que manda na terra
que manda no ar
ajudai-me, rainha do mar.
Zum, zum, zum...
[...]
MARTINS (2002, p. 78)
Como se pode perceber, a autora utiliza-se dos rituais de congado para trazer à
reflexão as estratégias de resistência das pessoas negras escravizadas em diversos espaços,
sobretudo nas Américas, aos processos de escravização, à negação de suas culturas e ao
apagamento das performances que caracterizavam suas coletividades. Martins (2002), numa
tentativa de sintetizar uma das narrativas de origem deste ritual já que, segundo ela, todos os
atos rituais partem de uma narrativa de origem -, diz que tudo se inicia na época da
escravidão, quando uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Conforme
relatos da autora, avistando a Santa, que resplandecia de modo a ofuscar a luz do sol, os
negros escravizados chamaram o dono da fazenda e pediram-lhe permissão para retirá-la das
águas. O fazendeiro negou-lhes o pedido, mas ordenou-lhes que construíssem uma capela
para a Santa com muitos enfeites.
Ainda segundo Martins, após o término da construção da capela, o patrão reuniu seus
amigos brancos e, juntos, retiraram a Imagem das águas e a colocaram num altar. A Santa,
todavia, rejeitou aquele espaço, retornando às águas. Foram várias as tentativas de resgate da
Imagem para o altar construído a pedido do fazendeiro, porém todas sem êxito; a divindade
sempre voltava às águas.
Sentindo-se frustrado com sua ideia, o homem branco resolveu, então, pedir aos seus
escravizados que retirassem a Imagem da água. Primeiro foi um grupo de escravizados de
Congo, que se enfeitou bastante com cores vistosas, muitas danças, tentando cativar a santa.
Ela pareceu ter gostado muito das performances, no entanto ainda não saíra das águas. Leda
narra que seguira então outro grupo de negros escravizados, mais velhos e muito pobres, o
qual, antes de ir ao mar tentar retirar a santa, foi às matas, cortou madeiras, produziu tambores
com troncos e folhas de inhame e formaram um grupo de candombes. Entraram nas águas,
com muita dança telúrica e cantos africanos que cativaram a santa, trazendo-a de volta para a
capela, onde todos os negros dançaram e cantaram para comemorar (MARTINS, 2002, p. 75).
A narrativa apresentada por Martins mostra-nos o modo subversivo que marca estes
ritos. O fato de a Santa apenas ter saído das águas para permanecer na capela após uma forte
sedução pelos cantos e danças africanos indica várias performances de resistência a um
processo colonizatório e escravista que tenta apagar dos corpos aquilo que os mantém vivos,
bem como que ultrapassa o corpo físico. Trata-se de um devir poético performatizado, um
desejo de existência que busca se instaurar numa ausência.
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Se aqueles sujeitos não puderam expressar suas culturas e modos de vida livremente
por temer à opressão do colonizador, eles utilizaram-se daquilo que o atraia, ou seja, dos
instrumentos do próprio colonizador, para manifestar suas ancestralidades. A produção dos
tambores, empregando o próprio tronco que os castigava, é uma metáfora dessa inversão de
ordem, desta rasura.
O coletivo superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de
resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por
metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do
corpo e da voz. Tanto no enunciado da narração mítica, quanto na
performance dramática que cenicamente a representam, a superação parcial
das diversidades étnicas recria o ethos comum e o ato coletivo negro como
estratégias de substituição e reorganização das fraturas do conhecimento
(MARTINS, 2002, p. 81).
Assim como nos rituais de congado, o canto e as performances vocais, corporais e
outros elementos que constituem sua poética, além de traduzirem a ancestralidade, bem como
toda uma potência presente na cultura africana, embalam estratégias de resistência à negação
desse processo, à escravização, à impossibilidade de expressão de um corpo e movimento que
se configuram em muitos modos de vida, o individual e o coletivo, numa grande fusão.
A literatura negra também segue esse viés de resistência. Se, secularmente, os negros
foram retratados nessa arte, principalmente, sob a perspectiva da subalternidade, da
escravidão e inferiorização, igualmente no decurso da história muitos escritores têm se
debruçado na inversão dessa ordem, abordando a cultura negra de modo afirmativo e
preocupando-se com a construção de uma autoimagem positiva das pessoas negras.
No texto que segue, o escritor brasileiro Jorge de Lima traz ao leitor a construção de
uma representação da mulher negra, por exemplo, como objeto sexual, como tendo sido dócil
aos processos de escravização dos quais, a despeito de toda uma resistência, fora vítima.
Essa negra fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
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Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
[...]
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
(LIMA, 1980, p. 237).
Todavia, com o intuito de inverter essa ordem sustentada por Lima (1980) e por tantos
outros escritores, o poeta brasileiro Oliveira Silveira, num estilo subversivo, reescreve o
texto“ Essa negra Fulô”, sob outro olhar; o olhar de um eu poético que se reconhece negro,
tendo a negritude como potência, como marca de resistência:
Outra Nega Fulô
O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia,
a blusa e se pelou.
O sinhô ficou tarado,
largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
pegou um pau e sampou
nas guampas do sinhô.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!,
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dizia intimamente satisfeito
o velho pai João
pra escândalo do bom Jorge de Lima,
seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
fingindo uma dor no coração.
Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
Ah, foi você que matou!
É sim, fui eu que matou
disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!
(SILVEIRA, 2016, p. 56-57).
Nos versos de Silveira, percebe-se um sujeito poético que questiona a ideia de
passividade da mulher negra escravizada, que pode ser observada no texto de Jorge de Lima.
Tomado por um eu poético que se propõe político - político o em sentido partidário, e sim
em sua acepção mais ampla, de participação, de posicionamento - Silveira “rasura” a sintaxe e
a semântica de “Essa negra fulô”. Se em Lima a Negra Fulô deita-se com “seu” Senhor, de
modo dócil, sem resistência, como se pode ver nos versos “O Sinhô foi açoitar/ sozinho a
negra Fulô/A negra tirou a saia/e tirou o cabeção/de dentro dele pulou/nuinha a negra Fulô”,
em Silveira ela resiste, nega-se a ter seu corpo explorado: O sinhô foi açoitar/ a outra nega
Fulô/ ou será que era a mesma?/A nega tirou a saia/a blusa e se pelou/O sinhô ficou
tarado/largou o relho e se engraçou/A nega em vez de deitar/pegou um pau e sampou/nas
guampas do sinhô/ Essa nega Fulô!” (SILVEIRA, 1988, p. 56-57).
É importante a releitura desses textos nas escolas para que os adolescentes, jovens,
adultos e idosos, negros e negras, indígenas, quilombolas, sujeitos do campo e da cidade,
tenham a oportunidade de perceber a escola também como um espaço de
construção/reconstrução de suas autoimagens de modo positivo e afirmativo. É preciso
ensinar literatura sob um viés político, como uma arte que pode tensionar importantes
situações culturais, sociais, históricas e identitárias. A literatura, como todo o processo
educativo, é política. A quem interessa o ensino de uma literatura que não se proponha
política? Neste sentido, torna-se imprescindível a leitura de escritores da literatura negra, por
exemplo, os quais, numa estratégia subversiva, rasuram quaisquer discursos que ponham as
pessoas negras em condição de passividade, subalternidade, dentre outras situações.
Os homens e, sobretudo, as mulheres negras nunca permaneceram passivos a
quaisquer processos de cerceamento da liberdade, às violências impostas aos seus corpos.
Maria Firmina dos Reis, por exemplo, uma mulher negra que, num contexto racista, apoiado
pelo cientificismo, e segregacionista, como fora o século XIX, mormente, tornou-se escritora
ainda que com um tímido e tardio reconhecimento. Estas estratégias de resistência são
objetos de análises de muitos escritores, há algum tempo.
Ainda no que concerne ao caráter político implicado no ato de produzir literatura, é
válido ler os versos da escritora baiana Alessandra Sampaio:
Relutância
Para Isaías Silva de Jesus
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Aquele emprego esperado
Com sabor de liberdade
Veio acompanhado de tesoura
Pra cortar o teu brilho
Sufocar meu suspiro
Ao tocar o teu black
Que há tempos admiro
(SAMPAIO, 2016, p.32)
Em “Relutância”, a poetisa permite ao leitor o contato com um eu poético que
denuncia as violências social, cultural, identitária, mas também históricas vivenciadas por
muitas pessoas negras. Como é possível perceber nos versos acima dispostos, há, no poema,
uma voz que reclama o fato de um sujeito negro ter tido de cortar seus cabelos crespos, pois
estes o retiravam do perfil para uma vaga de emprego. Que perfis são estes? Quem os define?
Sob quais perspectivas, sobretudo ideológicas, estes perfis são delineados? Essas são algumas
das inquietações provocadas pelo texto de Alessandra Sampaio, as quais favorecem -, além de
uma compreensão de que a literatura é produzida em diálogo com as experiências humanas,
com o que de mais intenso nessas experiências, outros questionamentos, tais como: Que
literatura priorizar nas escolas? E em contextos de Educação do campo, os quais, segundo
Arroyo (2009), dentre outros pesquisadores, surgem na contramão de um modelo hegemônico
de educação que oprime, escraviza e nega os modos de vida dos sujeitos do campo?
Ensino de Literatura
Que é mesmo ensinar literatura? Trata-se da capacidade de apresentar aos estudantes
um arsenal de textos e autores escolhidos por instâncias sociais legitimadoras das
consideradas grandes produções literárias, como as escolas e as universidades? Mas que
noções de literatura essas instituições defendem? Uma literatura como espaço de criação, de
inversões de ordens instituídas, de potencialização de ideias, independentemente de seus
suportes ou modos de criação, oral ou escrita, por exemplo? Em quais perspectivas de arte
literária essas noções encontram ancoragem?
Em Platão, por exemplo, a arte literária fora concebida como espaço de modalização
dos sujeitos, como instrumento corruptível, que não deve existir fora da moral. Em diálogo
com Aristóteles sobre a constituição de sua República, Platão sugere a destruição de alguns
trechos da Odisseia, de Homero, por considerá-los perigosos aos homens, como se pode
observar no trecho a seguir:
No tocante a estas passagens e a todas as outras do mesmo gênero,
solicitaremos a Homero e aos outros poetas que não levem a mal se as
destruirmos; não que lhes falte poesia e não lisonjeiem o ouvido da maioria,
mas, quanto mais poéticas, menos convém à audição de crianças e homens
que devem ser livres e temer a escravidão mais do que a morte.
(GUINSBURG, 2014, p. 98-99).
A proposta de Platão é recebida sem embates pelo filósofo Aristóteles, que diz:
- Tens perfeita razão. Portanto cumpre também rejeitar todos os nomes
terríveis e apavorantes relativos a tais assuntos: os de Cocito, de Estige, dos
habitantes dos infernos e outros do mesmo gênero que põem a tremer quem
os escuta. (GUINSBURG, 2014, p. 99).
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Os diálogos estabelecidos por esses filósofos consagrados pela filosofia ocidental,
sem dúvidas, contribuíram para a grande tensão criada em torno da ideia de literatura. Quando
Platão, insistentemente, em seu discurso - como se pode perceber, sobretudo no livro III da
obra A República - faz questão de definir como a arte deve se comportar na sociedade, quem
deve apreciá-la ou para quem ou não ela deve ser produzida, a noção de literatura que ali se
percebe é a de um espaço de verdades incontestáveis, de cópia fiel da realidade, e não de uma
arte que se propõe à plurissignificação das ideias e que, portanto, deve manifestar-se de
modos diversos em diferentes sujeitos e contextos socioculturais.
É inegável a necessidade de considerar que essas concepções foram estabelecidas num
tempo em que ainda não se reconhecia o Sujeito histórico no processo de construção do
conhecimento. Isto parece ter tido início com Aristóteles, quando este, em discussão sobre a
mímesis antiga, como apontado por Lima (2000), admite que ela possa provocar dor e prazer;
a oportunidade de uma experiência ao receptor. “A mímesis Aristotélica ensina algo que a
ciência dos primeiros princípios, a obra em que ela mais se empenharia, não se permitia
ensinar: que é preciso saber viver sobre a dupla via, e não sobre a via única da verdade
alcançada pelo pensamento” (LIMA, 2000, p. 33).
Todavia, apesar de situar um discurso aparentemente relacionado a uma proposta de
defesa da autonomia da Arte, não fora esta a proposta de Aristóteles, já que, para ele, a noção
de metáfora, por exemplo, ainda aparecia bastante ligada à busca da verdade; portanto
limitada. Sobre essa questão, Lima (2000) observa, cuidadosamente salientado que se trata de
uma ideia meramente especulativa, que: “Não é pois que Aristóteles de algum modo
antecipasse o princípio da autonomia da arte. O que julgamos sua intuição parecia meta bem
diversa: habilitar o cidadão para o enredo da vida”. Então, como se pôde perceber, o Sujeito
da experiência ainda não é considerado no processo de construção do conhecimento neste
percurso da filosofia ocidental.
Essa questão, inclusive, fora objeto de análise feita por muitos filósofos, mormente
aqueles ligados à filosofia da linguagem, como Foucault, Deleuze, entre outros. Em as
“Palavras e as coisas”, por exemplo, Foucault problematiza tal ideia, quando admite que,
embora tenhamos tido acesso a grandes produções literárias, como as obras de Homero, a
noção de literatura, de fato, corresponde a uma criação da modernidade, surgindo,
especialmente, a partir do século XIX, momento em que o sujeito histórico começa a ser
considerando na análise da construção de conhecimentos.
Finalmente, a última das compensações ao nivelamento da linguagem, a
mais importante, a mais inesperada também, é o aparecimento da literatura.
Da literatura como tal, pois, desde Dante, desde Homero, existiu realmente,
no mundo ocidental, uma forma de linguagem que nós, agora, denominamos
“literatura”. Mas a palavra é de recente data, como recente é também em
nossa cultura o isolamento de uma linguagem singular, cuja modalidade
própria é ser “literária”. É que, no início do século XIX, na época em que a
linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a
parte, atravessar por um saber, ela se reconstituía alhures, sob uma forma
independente, de difícil acesso, dobrada sobre o enigma de seu nascimento e
inteiramente referida ao ato puro de escrever. [...] Da revolta romântica
contra um discurso imobilizado na sua cerimônia até a descoberta, por
Mallarmé, da palavra em seu poder impotente, vê-se bem qual foi, no século
XIX, a função da literatura em relação ao modo de ser moderno da
linguagem (FOUCAULT, 2000, p.306).
A partir da inserção deste considerado sujeito histórico, a literatura começa a ser
pensada como espaço móvel, múltiplo, que vai refletir também as experiências das
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comunidades, suas subjetividades, sem um necessário compromisso com a produção de
verdades. Em consonância com essas reflexões, Foucault diz ainda que a literatura
destaca-se de todos os valores que podiam, na idade clássica, fazê-la circular
(o gosto, o prazer, o natural, o verdadeiro) e faz nascer, no seu próprio
espaço, tudo o que pode assegurar-lhe a denegação lúdica (o escandaloso, o
feio, o impossível); rompe com toda definição de “gêneros” como formas
ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples
manifestação de uma linguagem que tem por lei afirmar contra todos
os outros discursos sua existência abrupta; nessas condições, não lhe resta
senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não
pudesse ter por conteúdo senão dizer sua própria forma: endereça-se a si
como subjetividade escriturante, ou busca capturar, no movimento que a faz
nascer, a essência de toda literatura (FOUCAULT, 2000, p.306).
A verdade pode até ocupar o espaço da literatura, mas não é o propósito desta arte
“defendê-la”, encerrá-la, “dizê-la”. A leitura literária, neste sentido, ficará a critério do
sujeito, deste sujeito histórico de que Foucault nos falou, que a lerá sob diferentes
perspectivas, a partir de seus distintos contextos sociais, culturais, identitários e históricos.
Nesta perspectiva, ao tempo que parece negativa a preocupação apontada por Platão e
Aristóteles no que concerne aos efeitos que a leitura literária pode causar, é possível dizer que
ela indica a possibilidade de pensar na potência criativa impressa na ideia de arte,
especialmente da arte literária, admitindo, inclusive, ou quem sabe até exigindo, uma
redefinição do termo literatura.
Em discussão sobre a potência criadora impressa na literatura oral, por exemplo, no
texto “A letra e a voz”, Zumthor (1993) afirma que nos rastros dos anos 50 do século XX
houve grandes conflitos entre pesquisadores, visto que a ideia de poesia oral exigia uma
redefinição do termo literatura. As poéticas orais obrigam um descentramento da ideia de
literatura por romper com o grafocentrismo, com a noção de literatura ligada apenas ao
impresso, passando a considerar os modos de criação que surgem das experiências dos
sujeitos, do seu cotidiano, das suas estratégias de interação com o mundo e de reflexão
criativa sobre a vida. Todo este movimento é resultante da ruptura com um conceito de
literatura impresso pela filosofia ocidental, que quase desconsidera as experiências dos
sujeitos, como se viu em Platão e Aristóteles.
Esta nova concepção de literatura favorece o ensino dessa arte em diversos contextos,
de modo a valorizar e interagir com as experiências dos sujeitos, dos seus destinatários. Em
relação ao ensino de literatura na Educação do campo, por exemplo, é possível considerá-lo
como um ato político, conforme mencionado neste trabalho. Como uma ação de
compromisso com causas, com a construção de redes de solidariedade, como é possível dizer,
por exemplo, das literaturas produzidas por mulheres negras, como Conceição Evaristo, Mel
Adún, Alessandra Sampaio, dentre tantas outras.
As produções dessas autoras são subversivas, na medida em que partem de reflexões
propostas por mulheres, numa sociedade machista e patriarcalista, em que à mulher quase
sempre fora negado o direito à produção, sobretudo intelectual; e de mulheres negras, numa
sociedade ainda marcada pelo racismo.
No texto “Eu não vou mais lavar os pratos”:
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
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Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar. [...]
(SOBRAL, 2013, s.p.)
Percebe-se, nos versos desenhados e potentemente ilustrados pelo eu poético, um ato
de libertação da opressão, que deve ser experienciado por muitas mulheres, sobretudo. Trata-
se de uma poesia comprometida com um coletivo, que possibilita a percepção de várias vozes,
as quais, de modo subversivo, exigem a inversão das ordens estabelecidas, balançando as
estruturas sociais, reclamando por relações respeitosas. Se à mulher, principalmente à mulher
negra, historicamente fora imposta a condição de subalternidade e opressão, a poética de
Sobral (2013) reitera que essa condição nunca fora, tampouco será aceita por estas pessoas:
“Eu não vou mais lavar os pratos/ Nem vou limpar a poeira dos móveis/Sinto muito. Comecei
a ler [...]”. O direito de estudar; de decidir sobre suas próprias ações, tudo isso é reivindicado
pelo eu poético.
É sob esta perspectiva que a literatura precisa ser ensinada nas escolas. Uma literatura
que dialogue com as experiências dos sujeitos. Que possibilite mudanças em seus modos de
autorrepresentar-se. A literatura como um ato político. É importante salientar que a mesma
produção literária que fora utilizada para criar representações negativas e estereotipadas em
relação à mulher negra, por exemplo, como muitos dos textos que marcaram o século XIX,
pode ser utilizada como instrumento de reescrita dessas representações, sob outras lentes,
como se viu no texto do poeta Oliveira Silveira.
Conforme preconizado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a linguagem dá ao
sujeito tanto a sua origem quanto o seu lugar próprio, o que permite inferir que um dos erros
da metafísica ocidental consiste em desconsiderar as experiências vividas pelos sujeitos a
partir da linguagem nas mais diversas esferas sociais. Ainda segundo esse pesquisador,
É nessa separação entre ciência e experiência que devemos perceber o
sentido, nada abstrato, mas extremamente concreto, das disputas que
dividiram os intérpretes do aristotelismo da antiguidade tardia e medieval a
propósito da unidade e da separação do intelecto e sua comunicação com os
sujeitos da experiência (AGAMBEN, 2005, p. 27).
Tais considerações feitas pelo autor, pautadas numa perspectiva rizomática de
construção do conhecimento, que desierarquiza sua produção, valorizando seus diferentes
moldes e diálogos com diversas culturas, grupos sociais, enfim, os variados contextos,
permitem o questionamento das práticas de ensino, especialmente nas escolas.
Em “O que é uma literatura menor”, Deleuze e Guattari discorrem sobre o modo que
Kafka, grande escritor judeu, trata da expressão literária. Destacando o lugar sociocultural - o
de judeu - ocupado por Kafka enquanto escritor de literatura, vivendo numa sociedade alemã,
os pesquisadores acreditam que o problema levantado por ele em relação à dificuldade de
reconhecimento de uma produção literária num contexto de soberania alemã não surge de
modo abstrato ou universal, mas sim experiencial.
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Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua
que uma minoria constrói numa ngua maior. E a primeira característica é
que a língua, de qualquer modo, é afetada por um forte coeficiente de
desterritorialização. Kafka, nesse sentido, define o impasse que impede o
acesso à escrita dos judeus de Praga e faz da literatura algo impossível;
impossibilidade de não escrever; impossibilidade de escrever em alemão,
impossibilidade de escrever de outra maneira (DELEUZE E GUATTARI,
2014, p. 38).
Ao referir-se à expressão “Literatura menor”, para dizer das produções elaboradas por
judeus em Varsóvia ou em Praga, Deleuze e Guattari (2014) afirmam que tal literatura é
política, é coletiva; apresenta-se como se trouxesse um eu-mobilizador, que fala por si e pelos
outros, que trata, no caso de Kafka, do sentimento da desterritorialização, uma luta coletiva. A
literatura se define, portanto, como espaço de experienciação; como uma máquina de guerra,
em sentido Deleuzeano.
Mas como tratar de uma literatura que dialoga com a experiência, de uma literatura
que é eminentemente política, se o currículo escolar continua majoritariamente preso a uma
concepção de produção literária ligada à metafísica do ocidente, como à filosófica de Platão,
por exemplo? Vale destacar que, ao discutir o simulacro como uma cópia imperfeita, Platão
exclui a possibilidade de autonomia da arte, e a considera como instrumento a serviço de uma
ordem social.
A formação leitora dos sujeitos, sobretudo a formação do leitor de literatura, precisa
ser pensada em seu estreitamento com a cultura das diferentes comunidades, valorizando
todos os modos de manifestação literária, seja oral-escrita, como a poesia de cordel, oral,
apenas, ou escrita. Para tanto, é necessário investigar de que modo as escolas têm olhado para
tal diversidade e que diálogos têm sido estabelecidos para a construção do conhecimento num
entrecruzamento com a cultura, que, no caso específico deste artigo, tem a ver com os saberes
que constituem os grupos sociais do Campo e sua quase negação pela escola.
Pesquisar sobre os processos interativos ocorrentes entre os modos de vida das
comunidades do campo, o ensino e a aprendizagem escolares corresponde a uma estratégia de
compreensão das múltiplas identidades dos campesinos, seus diferentes modos de ser, fazer e
conhecer, mas também sobre os estereótipos sociais construídos em torno destes, devido a um
modelo civilizatório bastante violento e suas interferências na sociedade que se forma.
Educação do campo
O termo educação Do Campo, e não Educação No Campo, surge em contraposição a
uma ideia de educação pensada para contextos rurais, mas reprodutora de modelos
urbanocêntricos, que excluem o diálogo com as identidades e modos de vida dos sujeitos do
campo. O espaço do Campo, de acordo com Arroyo (2003), é constituído de uma potência
identitária, ou seja, de sujeitos que possuem um perfil diverso: “trabalhadores, camponeses,
mulheres, negros, povos indígenas, jovens, sem-teto... Sujeitos coletivos históricos, se
mexendo, incomodando, resistindo. Em movimento” (ARROYO, 2003, p.33), a qual nega e
repulsa quaisquer propostas de ensino e aprendizagem que se mostrem homogêneas e
hierarquizantes.
Uma proposta de Educação do campo exige a ultrapassagem dos limites da escola
formal, como também a luta pela garantia de políticas públicas e por uma identidade própria à
educação e às escolas do campo, favorecendo as condições de cidadania e possível melhoria
das condições de vida aos milhares de brasileiros e brasileiras que vivem no campo
(BASÍLIA, 2002, p. 11). A ideia de cidadania, neste contexto, ao contrário de refletir uma
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perspectiva de atendimento ou reprodução de modelos sociais, diz respeito à promoção da
participação social das comunidades campesinas, as quais devem protagonizar, ou seja, viver
como sujeitos de suas próprias histórias, refletindo sobre as práticas escolares a partir de seus
próprios lugares, espaços e territórios.
A história da educação formal, no Brasil, é marcada pela instituição de modelos
sociais que quase nada dialogam com as identidades, culturas e modos de vida, sobretudo dos
povos do campo. Brasília (2002, p. 11) aponta ainda para os resultados de uma Conferência
Nacional “Por uma Educação Básica do básica do campo”, realizada em Luziânia - Goiás, em
que foram afirmadas a existência do campo e a legitimidade das lutas pela instituição de
políticas públicas específicas e por um projeto educativo próprio para quem vive nele.
No campo estão milhões de brasileiros e brasileiras, da infância até a terceira idade,
que vivem e trabalham no campo, como: pequenos agricultores, quilombolas, indígenas,
pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, lavradores,
sem-terra, entre outros. Apesar de o reconhecimento dessa potencialidade identitária que
caracteriza as comunidades do campo, “Há currículos deslocados das necessidades e das
questões do campo e dos interesses dos seus sujeitos. [...] Crianças e jovens têm o direito de
aprender da sabedoria dos seus antepassados e de produzir novos conhecimentos para
permanecer no campo” (BRASÍLIA, 2002, p. 17).
A discussão sobre o ensino de literatura neste contexto surge como estratégias de se
pensar na leitura e produção literárias, nas escolas, como um ato político, de luta contra
processos de desterritorialização, de violências identitária e cultural, de reflexão sobre a vida,
como sugerido por Deleuze e Guatarri.
Conforme analisado por Cosson (2009, p. 17), “Na leitura e na escritura de um texto
literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A
literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós
mesmos. A reflexão proposta por esse autor, bem como todo o percurso teórico traçado neste
trabalho, contribuem para reafirmar a ideia de que o ensino de literatura, assim como
quaisquer práticas de ensino e aprendizagem precisa ocorrer em diálogo com as experiências
dos diferentes sujeitos.
Considerações finais
As análises feitas no decorrer deste texto permitem compreender a complexidade que
cerca a definição do currículo escolar e a violência que se impõe quando o fazemos sem
considerar as potencialidades social, cultural, histórica e identitária que constituem as
comunidades a que estas propostas se destinam. O que ensinar? Como ensinar? A quem
ensinar? Esses questionamentos devem ser feitos por quem se propõe a mediar conhecimentos
em contextos escolares, sobretudo se se concebe a escola como espaço de formação de
sujeitos sociais.
Consoante ao que se viu nas ideias de Arroyo, as identidades e modos de vida dos
diferentes sujeitos sociais impõem a necessidade de revisão ou reformulação das práticas
pedagógicas e dos currículos escolares. No Campo, não cabe a reprodução de um modelo
“civilizatório” de ensino de leitura literária, por exemplo, pois isto não favorecerá o
protagonismo dos sujeitos. A literatura, como apontado por Deleuze e Guatarri, pode
configurar-se em um ato político, assim como deve ser o processo educativo. Mas ela terá
este sentido, funcionará como uma “máquina de guerra” em sentido Deleuzeano, se for
pensada em diálogo com as experiências de seus leitores. De seus ouvintes. De seus
interlocutores, no campo ou na cidade, em diferentes espaços e territórios.
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Em contato com as produções de grandes escritores e escritoras da literatura negra,
como Oliveira Silveira, Cristiane Sobral, Alessandra Sampaio, dentre tantos outros/outras que
não caberiam em um único artigo, pode-se perceber as possibilidades de trabalho com a
literatura, na escola, como um ato político, como estratégia de luta e de inversão de ordens
sociais, culturais e históricas. Neste sentido, este trabalho configura-se em um convite à
reflexão sobre que literatura ensinar em contextos socioculturais tão diversos, como no Brasil,
por exemplo.
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literaturamedieval. Tradução Amálio Pinheiro e
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[Recebido: 01 out. 2019 – Aceito: 22 jan. 2020]