Revista
do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
DA RUA À LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA DOS SARAUS & SLAMS:
LETRAMENTOS LITERÁRIOS DE REEXISTÊNCIA NA FORMAÇÃO SENSÍVEL-POLÍTICA DE ESCRITORES E LEITORES POR MEIO DE PERFORMANCE POÉTICA EM ESPAÇOS NÃO-ESCOLARES
FROM STREET TO MARGINAL-PERIPHERAL LITERATURE OF RECITALS & POETRYSLAMS: LITERARY LITERACIES OF REEXISTENCE IN SENSITIVE POLITICAL FORMATION OF WRITERS AND READERS THROUGH POETIC PERFORMANCE IN NOT-SCHOOL SPACES
Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza (CEFET-MG)1
Resumo: A Literatura Marginal-Periférica é um movimento que se consolida nos anos 2000 e emerge das ruas e periferias de São Paulo, espalhando-se para outros grandes centros urbanos do Brasil. Num primeiro momento, a base propulsora dessa cena literária é o circuito de saraus, e as competições de slams que ganham mais visibilidade numa segunda fase. O principal meio de expressão dessa literatura é a performance poética que se faz presente nos espaços à margem da cidade e do sistema literário, e que mobiliza um público significativo de jovens para a escuta, a leitura, a escrita e o protagonismo produtor dessa literatura contemporânea. Com esse processo de circulação nas/pelas ruas e periferias, a literatura marginal dos saraus e slams promove a formação sensível de leitores e escritores por meio da recepção das performances/vozes poéticas e letramentos de reexistência que criticam as opressões/desigualdades políticas, sociais, raciais, de gênero/orientação sexual, etc., que seus corpos periféricos/minoritários vivenciam na sociedade. O objetivo desse artigo é realizar algumas leituras analíticas dos letramentos literários de reexistência na formação sensível-política por meio das performances nos saraus/slams de literatura periférica de Belo Horizonte. Para isso, contextualizamos esse nicho literário mediante o cruzamento entre conceitos teóricos e exemplos de performances poéticas.
Palavras-chave: Literatura Marginal. Sarau. Letramentos Literários. Voz. Performance Poética.
Abstract: Marginal-Peripheral Literature is a movement that consolidates in the 2000s and emerges from the streets and peripheries of São Paulo, spreading to others bigs urban centers of Brazil. At first, the driving force of this literary scene is the recitals circuit, and the slam competitions that gain more visibility in a second phase. The main means of expression of this literature is the poetic performance that is present in the spaces on the fringes of the city and the literary system, and which mobilizes a significant audience of young people to listen, read, write and produce the leading role of this contemporary literature. With this process circulating in the streets and peripheries, the marginal literature of recitals and slams promotes the sensible formation of readers and writers by receiving the poetic performances / voices and reexistence literacies that criticize political, social, racial oppression / inequality, gender / sexual orientation, etc., that their peripheral / minority bodies experience in society. The purpose of this article is to perform some analytical readings of literary literacies of reexistence in the political-sensitive formation through performances in the recitals / slams of Belo Horizonte's peripheral literature. To this end, we contextualized this literary niche by crossing theoretical concepts and examples of poetic performances.
Key-words: Marginal Literature. Recitals. Literary Literacies. Voice. Poetic Performance.
Introdução
A rua é tratada, conforme Ivete Lara Camargos Walty (2014), como um espaço político, econômico e cultural em que coexiste a diversidade populacional numa pluralidade de lugares e narrativas urbanas que promovem encontros identitários, étnicos e/ou classistas. Assim o faz, também, a Literatura Marginal-Periférica produzida nos saraus de rua frente ao campo da produção cultural contemporânea, emergindo surpresas inesperadas neste entre lugar ou não-lugar da rua violenta e abandonada, já que, segundo a arquiteta Camila Renata Félix de Oliveira,
A rua, a praça, a esquina, o espaço público, é o lugar da surpresa, do encontro com o inesperado, da oportunidade de realmente vivenciar a cidade. Mas na maioria das vezes são locais abandonados pelo poder público e também abandonado pelos moradores. O que é da rua é muitas vezes visto como violento, como perigoso. [...] é clara a percepção do sarau como expressão da realidade da rua, como a forma de passar um olhar, uma voz da periferia, do ser periférico e marginal, para a rua. (FÉLIX, 2017, p. 162).
Dessa perspectiva sociocultural, sujeitos periféricos, negros, pobres, jovens, ativistas das minorias políticas, nos anos 2000, vêm ressignificar aquela prática literária e social do Sarau cultivada nos séculos XIX e XX por classes letradas e elitizadas. De forma semelhante ao Movimento Cultural Hip-Hop (1980-1990), a Literatura Marginal-Periférica insurge nas favelas, morros, vilas, presídios, muros e ruas das metrópoles urbanas do país. Com este movimento cultural periférico, observa-se uma inovadora apropriação popular da prática literária do sarau, que antes era praticado por setores da classe média e elite rural-industrial.
Retoma-se, a partir dessa transição aproximativa entre rua e a literatura periférica, o termo Sarau que é uma derivação etimológica do latim serum que carrega o significado de “tarde”, pois era nesse período do dia que aconteciam os saraus promovidos por setores de artistas, políticos ou do mercado editorial como meio de divulgação pública de suas obras. Assim, a antropóloga e doutora em literatura Lucía Tennina relembra as raízes históricas do sarau, afirmando que
A palavra sarau não é recente. Diversas músicas, romances, cartas, crônicas e memórias do século XIX, da Europa e da América, fazem referência a essas luxuosas reuniões de amigos, artistas, políticos e livreiros, que, com frequência variada, encontravam-se em casas de certas figuras da alta sociedade ou em espaços exclusivos desses setores – como clubes e livrarias – para tornar suas criações públicas. (TENNINA, 2013, p. 11).
Por outra ótica sobre essa transição etimológica e geográfica, os saraus não-elitizados dos anos 2000 vêm acontecendo em espaços à margem do centro das metrópoles como: bares, praças, ruas, metrô, esquinas, dentre outros lugares periféricos à linguagem central. Tal deslocamento espacial que populariza a prática literária do sarau, é um processo de ressignificação que também mobilizou Mark Smith – um operário da construção civil – a organizar, em um bairro de trabalhadores da zona norte da cidade de Chicago, o Poetry Slam que é uma competição de poesia falada com intuito de democratização da literatura oral “em contraponto aos fechados e assépticos círculos acadêmicos”, (D’ALVA, 2014, p. 110), do campo literário americano. O termo slam é apropriado dos torneios de baseball e briged, e designava, primeiramente, a performance poética e depois a competição de poesia falada. No Brasil, o slam chega em 2008 pelas mãos da Zona Autônoma da Palavra (o pioneiro ZAP Slam no bairro Pompéia da capital paulista) e segue esse contraponto crítico que já era feito pelos saraus marginas nas periferias de São Paulo desde 2001 quando surge o Sarau da Cooperifa considerado o precursor desse movimento conectado à Literatura Marginal Contemporânea.
Desse modo, os slams se identifica com essa cena literária de vozes periféricas que ecoam pelos saraus não-elitizados que sustentam a base do movimento de Literatura Marginal-Periférica, o qual transborda por vários centros urbanos pelo Brasil. Portanto, refletimos que não importa se haverá legitimação dessa literatura praticada nas fendas da cidade-capital urbana, incluindo-a ou não ao campo artístico, literário e cultural, pois, a imagem que possa dar conta da produção linguística periférica não seja tanto a da inclusão (aos grandes meios de comunicação, às grandes editoras, aos circuitos da cultura da cidade criativa etc.), mas – justamente ao contrário – a do êxodo dos lugares corrompidos de poder e vampirização, por um lado, e a da expansão do orgulho, da produção comum, da colaboração e da cidadania, por outro. (RENA, 2016, p. 110).
Essa Literatura Marginal-Periférica é, portanto, marcada pela crítica social criativa em suas performances poéticos-corporal em lugares hostis da rua contemporânea e protagonizadas por jovens escritores e leitores, que se forjaram positivamente em contextos não-escolarizados e por intermédio de uma educação sensível e letramentos literários de resistência ou reexistência. Nesse sentido, a escrita e a leitura dessa Literatura Periférica vêm se constituir como potentes e promissores “atos de resistência”, (DAVIS apud WALTY, 2014, p. 219), ao campo literário e cultural canonizado e institucionalizado por setores hegemônicos dentro do Estado-capital.
Um indício desses processos sensíveis de Educação e Letramentos Literários de Reexistência, (SOUZA, 2011) Não-Escolarizados, é registrado pelo pesquisador João Paulo de Freitas Campos em 2016 quando demonstra, na sua etnografia urbana antropológica do Sarau Vira-Lata de Belo Horizonte, que
De fato, não foram poucas pessoas que começaram a ler, escrever e declamar poesias ao frequentarem estes saraus. Este é o caso de um notório frequentador dos encontros, que assume o pseudônimo de “Vagabundo Iluminado”. Ele afirmou que antes de conhecer o Sarau Vira-Lata “não tinha interesse em poesia”, mas ao começar a frequentá-lo logo começou a escrever e declamar, sendo comum vê-lo caminhando por ruas, praças e bares da cidade vendendo suas zines e livros, manufaturados por ele mesmo. (CAMPOS, 2016, p. 17, grifos nossos).
Aqui constata-se, inicialmente, um exemplo do processo de letramento literário em contexto e/ou espaço não-escolarizado como as praças ocupadas pelo Sarau Vira-Lata, na capital mineira, e que estimulou positivamente, em alguma medida, a leitura e a escrita do poeta Matheus Garcia Torrezani, o conhecido “Vagabundo Iluminado”. Com isso, este sujeito desinteressado em Literatura, devido talvez à experiências negativas com a linguagem literária na Escola, viria a se abrir para a leitura e escrita de poesias após sua participação nos encontros do Sarau Vira-Lata em 2011.
Esta questão nos aproxima de ressignificações sensíveis de Letramentos Literários para além da principal Agência de Letramento na sociedade: a Escola. Tal reflexão já era realizada pela reconhecida teórica dos letramentos Graça Paulino que afirma que: “O letramento literário, como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação pessoal de práticas sociais de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem por ela.” (PAULINO, 2004, p. 165).
Assim, a apropriação da leitura e escrita literária do escritor Vagabundo Iluminado se desenvolveu por meio de uma prática de ressignificação coletiva do sarau de produção criativa da literatura marginal-periférica. Portanto nesse processo, há uma singularidade no uso da linguagem literária da poesia oral performada por este leitor-escritor e tantos outros nas ruas em seus cotidianos de microrresistências àquela experiência negativa do cânone escolar. Assim, este poeta questiona em seus versos reexistentes à linguagem formal e erudita do cânone escolar:
Me pediram pra FAZER poesias belas / com rimas, palavras complicadas / que soem bem aos ouvidos que desejam / ser massageados por palavras / Mas EU sou Poeta Marginal [...] Registrar o ERRO em palavras é minha função social. (VAGABUNDO ILUMINADO, 2015, p. 4-5).
Os atos performáticos poéticos e sensíveis do sarau marginal são reinventados num sentido de nova existência literária potente e rebelde fora da ordem escolar e, por isso, detonadores de Letramentos de Reexistência Literária Sensível-Política na formação de jovens leitores e escritores na contemporaneidade. Com isso, ações estético-políticas dos saraus de literatura periférica da rua contribuiriam para processos de Letramentos Literários Não-Escolarizados na comunidade, interferindo no campo literário canonizado-hegemônico dentro dos sistemas escolar e cultural, por meio de performances/vozes poéticas.
Letramentos literários de reexistência nos saraus e slams de literatura marginal
O Circuito/Movimento/Cena dos Saraus e Slams de Belo Horizonte promove a visibilidade de outras práticas sociais de uso das linguagens literárias não-canonizadas/escolarizadas que são fomentadas em outras Agências (Literatura Marginal-Periférica dos Saraus-Slams) e por outros Agentes (escritores, poetas, performers, cantores, dançarinos) de Letramento. Assim, os processos de Letramentos, escolarizado ou não, deveriam, provavelmente,
recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. (ROJO, 2009, p. 32).
Porém, esta perspectiva sociocultural e antropológica dos letramentos, que abrange as práticas de linguagem dos jovens leitores na periferia ou no centro da cidade, esbarra em hegemonias influenciadoras da prática pedagógica dos professores nas escolas. Com isso, o discurso pedagógico desconsidera agências de letramentos que estão fora da escola e são desestabilizadoras da fixidez da “escolarização da literatura”, ou descontroem a “leitura literária” única autorizada pela tradição do cânone estético-escolar.
Nesse movimento de contraponto à hegemonia da escolarização da literatura no sistema escolar, a pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza (2011) reconheceu o Movimento Cultural Hip-Hop como uma Agência emergente de Letramento Multissemiótico nos usos e práticas da linguagem no cotidiano de jovens negros, ativistas, rappers, arte-educadores, que se transformam em Agentes de Letramentos em suas comunidades leitoras na periferia de São Paulo.
Aproximamos dessa autora o enfoque ideológico na abordagem do Letramento, sugerido pelas performances e vozes poéticas dos saraus e slams de BH nas quais se “vê as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos” (STREET, 1993, p. 7 apud ROJO, 2009, p. 99).
Souza (2011) contribui, ao reconhecer a complexidade dos Letramentos do Movimento Hip-Hop associado ao Movimento Negro diante das estruturas de poder e culturais na sociedade, para nossa abordagem dos Letramentos Literários fora da Escola que produzem aquelas contestações estético-políticas de leitores-escritores coletivozes vira-latas comuns. Assim, em sua pesquisa a Ana Lúcia afirma que
[...] não era mais o caso de observar as singularidades de suas práticas letradas, mesmo estando fora do espaço escolar, mas perceber em que medida elas não apenas eram letradas, como reelaboravam a perspectiva de resultados ao mostrarem que não apenas valorizavam a cultura letrada escolarizada, embora a refutassem em muitos momentos, como principalmente a reinventavam [...] Nesse movimento, eles não apenas resistiram a um modelo de letramento excludente apoiado em formas já cristalizadas de legitimação, mas criaram outras formas de dizer o já dito, imprimindo de forma indelével suas identidades sociais. Daí a nomeação letramentos de reexistência e não apenas de “resistência” (SOUZA, 2011, p. 158).
Aquela palavra como arma do Poeta Marginal-Periférico transforma-se, então, em Letramentos Literários de Reexistência Não-Escolarizados performados, em atos de resistência àquele Letramento Escolarizado pelos saraus em suas ações estético-políticas que ocupam ruas, bares, praças, estações de metrô, etc. Assim, “é na palavra partilhada que se encontra a conquista dessa revolução, diz Sérgio Vaz ao relatar experiências” do Sarau da Cooperifa em São Paulo, pois o pobre trabalhador “cuja única dose de lazer e cultura eram as pílulas anestésicas da televisão, agora tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que a gente não tinha e que agora era nossa” (VAZ apud WALTY, 2014, p. 223-224).
Priscila Gunutzmann (2017), pesquisadora da PUC-SP, também, percebe esta potência da palavra poética quando mergulha no Sarau do Binho de São Paulo, que surgiu inspirado na Cooperifa em outra quebrada da metrópole. Com isso, “é a utilização da poesia enquanto mecanismo de transformação social cujos temas e apresentações possibilitam a reflexão e aprendizagem que fazem parte da formação identitária de indivíduos que passam a contestar a ordem estabelecida” (GUNUTZMANN, 2017, p. 238-239).
Essa partilha sensível e revolucionária da palavra literária num bar periférico foi a inspiração para o surgimento em 2008 do Coletivoz Sarau de Periferia na regional do Barreiro em Belo Horizonte, cujo manifesto da “Voz Coletiva” demarca “ideia de coletividade, que vem desde o título, atravessa o texto, marcado pela busca do diálogo com o discurso hegemônico, embora a ele a se oponha em exercício de resistência” (WALTY, 2014, p. 224). Também nessa linha da potência do “coletivo”, o antropólogo João Campos (2016) aponta que “Essa perspectiva de ação estético-política consiste na criação de sensibilidades compartilhadas (RANCIÈRE, 2009), capazes de deslocar o visível e o invisível, num processo criativo, afetivo e emancipador, tecendo novas maneiras de estar no mundo, tornando o novo possível” (CAMPOS, 2016, p. 63).
Nesses novos modos e movimentos de recepção, reexistência e leitura-escritura sensível das performances das vozes coletivas da Cooperifa, Coletivoz, Vira-Latas, Comum “os saraus constituem rebeliões poéticas que manipulam taticamente espaços e práticas artísticas, inventando novos usos e sentidos para ambos” (CAMPOS, 2016, p. 61). Daí a recepção da Poesia Oral da Literatura Marginal-Periférica vem constituir-se “um ato único de participação, copresença, que esta [poesia oral vem] gerando o prazer. Esse ato único é a performance” (ZUMTHOR, 2014, p. 65).
A performance do Vagabundo iluminado em que o poeta vocaliza a dor do trabalhador queimando sua carteira de trabalho, durante a etnografia urbana do EDUC/PUC-MG2 em 2014, configura-se uma formação crítica de leitores, espectadores no Sarau Comum, em relação ao mundo desigual do trabalho nesta cidade-capital, promovendo a emergência dos Letramentos Literários de Reexistência que poderia ser a ponte entre a Cultura Escolar e sua comunidade de jovens leitores e escritores num sentido sensível de transformações das linguagens e, consequentemente, do mundo ao redor superando barreiras entre saberes do professor e estudantes, bem entre a periferia e o centro.
Performance, leitura, recepção e prazer estético-sensível
Tal leitura breve que realizamos daquela performance do poeta Vagabundo Iluminado no Sarau Comum nos aproxima de um estado reflexivo sobre os meandros e as nuanças da recepção estética do corpo dinamizado pela voz poética. Essa interpretação faz um diálogo plural e móvel com as práticas de leitura diante da performance poética em espaços não escolares ou não institucionalizados por aquele sistema literário e cultural dominante na produção da linguagem artística. A performance “POBRE trabalha a DOR” daquele poeta opera uma convergência ritualística e vibrante entre a escrita poética e o corpo vocalizado, desencadeando aquela minha interpretação-leitura que ativou meu repertório crítico em relação ao mundo e à identidade do trabalho e dos sujeitos trabalhadores em contextos urbanos.
A partir dessa reflexão dialógica sobre o leitor da performance poética editada por um escritor e performada no Sarau Comum-BH (Ocupação Cultural “Espaço Comum Luiz Estrela”), cruzamos com a visão da antropóloga Michele Petit (2008) em que o leitor é trabalhado por sua leitura de forma ativa e criativa para além da função informativa do texto escrito. Com isso,
O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso poderá levá-lo (PETIT, 2008, p. 28-29).
Esse aspecto do leitor ativo e recriador das semioses semânticas do texto com liberdade de trânsito é aprofundado pela antropóloga Petit que, citando Michel De Certeau, postula que “os leitores são viajantes; circulam por terras alheias; são nômades que caçam furtivamente em campos que não escreveram” (PETIT, 2008, p. 27). Assim, aquele relato de leitor “nômade” da performance poética (Sarau Comum) nos remete à diversidade de recepção dos modelos e situações da comunicação poética e artística e seus efeitos estéticos na relação escritor-texto-leitor, ou autor-obra-público de acordo com conceituação de “sistema literário” do Antonio Cândido (2000), bem como de “campo literário” do Pierre Bourdieu (1996).
Nessa perspectiva histórica e antropológica da linguagem literária, o estudioso das poéticas da voz Paul Zumthor (2014) apresenta modelos comunicativos para situações poéticas de performance/recepção/leitura, ao considerar, de maneira semelhante ao de Cândido e de Bourdieu, a literatura como uma prática cultural das atividades do campo artístico. Para isso, Zumthor concebe três elementos convergentes e universais para o fenômeno das práticas literárias e poéticas: primeiro, os produtores de textos/objetos estéticos, assim identificados por um grupo/geração; segundo, a existência de um conjunto de textos e obras reconhecido por seu valor simbólico/artístico; terceiro, a participação necessária de um público consumidor e receptor que identifique e reconheça aquelas obras/produtos como poéticas. Portanto “desses pontos articula-se um elemento ritual: textos identificados como tal, produtores assim identificados, público iniciado” (ZUMTHOR, 2014, p. 49).
Imbricado nesse pensamento sistêmico-comunicativo, Zumthor concebe a Recepção do ponto vista da compreensão histórica e da duração temporal, medindo “a extensão corporal, espacial e social onde o texto é conhecido e em que produziu efeitos” (2014, p. 51). Já a Performance é tratada, por Zumthor, como um termo antropológico e não, necessariamente, histórico, pois ela remete às condições do ato de expressão linguística e percepção sensorial do “aqui-agora”, desviando daquela “duração longa” possível no processo de recepção, uma vez que “performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata” (ZUMTHOR, 2014, p. 51). Daí o pesquisador das poéticas vocais relaciona os momentos de performance e de recepção naquela estrutura discursiva e enunciativa da comunicação literária, ponderando que:
A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido. [...] Uma das marcas do discurso poético (do “literário”) é, seguramente, por oposição a todos os outros, o forte confronto que ele instaura entre recepção e performance. Oposição tanto mais significativa que a recepção contempla uma duração mais longa (ZUMTHOR, 2014, p. 52).
Essa presença ímpar da performance ao receber o enunciado poético aproxima Paul Zumthor da ideia de “concretização” dos estudiosos alemães da Estética da Recepção, bem como voltamos para as variantes móveis do ato único da performance na promoção do “prazer artístico” em seu público leitor, ouvinte, espectador e participante copresente. A circunstância privilegiada da performance produz uma recepção e uma leitura geradoras do “prazer estético” na medida em que reintegra-se um “conjunto de percepções sensoriais”, pois “o que produz a concretização de um texto dotado de uma carga poética são, indissoluvelmente ligadas aos efeitos semânticos, as transformações do próprio leitor, transformações percebidas em geral como emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica” (ZUMTHOR, 2014, p. 54).
Carregados dessa emoção sensorial e pluralidade semântica, a recepção ou leitura que o leitor faz da performance realiza o “polo estético” que o autor elaborou do seu lugar ou “polo artístico” para sua obra que “não pode ser idêntica ao texto nem à sua concretização, mas deve situar-se em algum lugar entre os dois” (ISER, 1976, p. 21 apud COMPAGNON, 2010, p. 147). Assim, para esse teórico alemão Wolfang Iser, o leitor movimenta a si e a própria obra literária, definindo a leitura como “absorção e criação”, conforme Paul Zumthor (2014, p. 52-53) interpreta este teórico. Disso, o mediavalista concebe o leitor vivo e num movimento “nômade” que “vibra, de corpo e alma” (ZUMTHOR, 2014, p. 54).
Desse modo, a leitura é diálogo entre corpos, autor-público, mediado pelo texto oral ou escrito. A “compreensão” do texto poético se torna dialógica e mistura as percepções sensoriais das vozes dos corpos vibrantes do leitor com as do escritor, do receptor com as do produtor, do participante com as do performer. A materialidade sonora das palavras alteram virtualmente o estado físico e emocional dos sujeitos no ato enunciativo poético, seus centros nervosos sensitivos e táteis. Tais reverberações da performatividade artística e literária nos corpos desencadeiam o “prazer do texto” na medida em que transcende “necessariamente a ordem informativa do discurso” (ZUMTHOR, 2014, p. 63). Esse prazer da performance transfigura em mundo o corpo e seus conhecimentos vivenciais, o que desestabiliza e desconforta as crenças do leitor copresente-participante daquele ato de fruição estético-político, e “faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor”, (BARTHES, 2006, p. 20-21). Portanto, “O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu” (BARTHES, 2006, p. 24).
Hans Robert Jauss (1979) concebe condições ou elementos para uma “conduta do prazer estético” que refere-se àquela livre transformação do leitor criativo viajante em interface com o texto e o escritor, movimentando-os (PETIT, 2008; DE CERTEAU, 1994). Com isso, Jauss postula que:
[...] a conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo liberação de e liberação para realiza-se por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua própria obra (poiesis); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto na realidade externa quanto na interna (aisthesis); e, por fim, para a experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas (JAUSS, 1979, p. 102).
A liberação do prazer estético perpassa, então, três consciências da poeticidade: produtora, receptora e intersubjetiva. Jauss (1979) caracteriza a poiesis como algo da necessidade de satisfazer a expressão do indivíduo ao “sentir-se em casa, no mundo” (p. 100-101). O reconhecimento das percepções sensoriais embasa a consciência receptora da aisthesis que assimila um saber ou um conhecimento por intermédio da experiência corporal sensível. A consciência experiencial da intersubjetivação, isto é, da katharsis, nos conduzem às sensações afetivas que vivenciamos, modificando-as, diante da manifestação poética, ou seja, “aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua psique” (JAUSS, 1979, p. 101-102).
Nesse jogo livre e não-linear do prazer poético entre leitura e escrita, recepção e performance, leitor e escritor, Jauss e Iser instituem dois conceitos para elevar o valor do leitor frente às obras literárias, incluindo um conjunto de normas sociais e de convenções culturais que constituem a ação do leitor e suas competências num dado período ou geração histórica. Por esse motivo, Jauss postula horizonte de expectativa na produção/recepção dos sentidos textuais, que Iser chama de repertório do leitor diante da obra literária (COMPAGNON, 2010). Nesse sentido das expectativas, seja no horizontes ou no repertório, aparece, por um lado, o leitor implícito que segue as instruções dos efeitos textuais (pretendidos pelo autor implícito), e, por outro, o leitor real que efetiva e estrutura a leitura real, equilibrando ou não aqueles pressupostos dos horizontes/repertórios, pois é aberto a interação desses sujeitos na intercomunicação humana.
A história dos atos relacionais da escrita e da leitura com texto poético apresenta, segundo Paul Zhumthor (2014), vários momentos que balizam aquela situação ou modelo da comunicação literária. O primeiro momento a ser instaurado é o de formação, aquele de produzir ou criar o texto. Na sequência, Zumthor fala da transmissão do produto textual estético, aquele momento de ser publicado. Depois a poiesis é recebida pela comunidade ou público e provoca a recepção. E, para enfrentar as temporalidades que limitam o fenômeno cultural, a poética passa pela conservação. Nesse processamento ocorre, naturalmente, inúmeras recepções ad infinitum que se somam no elemento da reiteração das poéticas, seja no suporte da grafia escrita ou da palavra viva. A partir desses momentos/fases da história da poeticidade, Zumthor vislumbra dois modelos situacionais para linguagem/comunicação literária: oralidade-vocal pura; leitura-escritura pura. Assim, detalha-se essas duas situações enunciativas e comunicativas:
Tabela 01: comparativo entre oralidade e leitura-escrita puras
Na situação de oralidade pura, |
Na situação de leitura-escritura pura, |
[...] a “formação” se opera pela voz, que carrega a palavra;
a primeira “transmissão” é obra de um personagem utilizando em palavra sua voz viva, que é, necessariamente, ligada a um gesto.
A “recepção” vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra tendo por objeto o discurso assim performatizado [...] transmissão e recepção aí continuam um ato único de participação, copresença, esta gerando prazer. [...] é a performance.
Quanto à “conservação”, em situação de oralidade pura, ela é entregue à memória, mas a memória implica, na “reiteração”, incessantes variações re-criadoras: é o que, nos trabalhos anteriores chamei de movência (ZUMTHOR, 2014, p. 65, grifos nossos).
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[...] a “formação” passa pela escritura, que é um traçado, desenhado por um utensílio manual (caneta etc.) ou máquina, e ademais codificado, de maneira diferente segundo os tipos de escritura, ou os tipos de língua.
A primeira “transmissão” vai-se fazer seja por manuscrito ou por impresso, de toda maneira por meio da mesma marca codificada, que além disso subsiste, daqui por diante, por ele mesmo, pronto para ser recebido pela leitura. Quanto a esta, ela é uma visão de segundo grau: o sentido visual do leitor serve-lhe para decodificar o que foi codificado na escrita, operação diferente da visão comum (informadora).
[...] A “conservação” se deve ao livro, à biblioteca, ao que Michel Foucault chamava de arquivo. Graças ao livro, à biblioteca, uma identidade fixou-se na permanência (ZUMTHOR, 2014, p. 65, grifos nossos).
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Existem algumas distinções nesse dois modos situacionais para a comunicação/produção artístico-estética. Uma das dissimetrias da obra transmitida pela voz e pela escrita é que a recepção se efetiva coletivamente na situação de oralidade-vocal. Destacamos práticas de recepção e leitura em grupo que são reverberadas por performances poéticas dentro das comunidades de Saraus e Slams da Literatura Contemporânea Periférica. Essas vibrações sensíveis provocadas pela recepção coletiva da palavra viva emanada pelas vozes poéticas nos saraus/slams, resgata a esfera sensorial daquela concretização do prazer único da performance, que ativa os sentidos de audição, visão, táctil, etc., dos sujeitos presentes na ritualização da linguagem artística, e isso demarca outra diferença essencial entre os dois modelos de comunicação, pois na oralidade “se mantém, de momento a momento, uma unidade muito forte, da ordem da percepção” (ZUMTHOR, 2014, p. 66).
Na situação de leitura-escritura pura, é apagada parte dos fatores perceptivos e sensíveis da presença vocal frente ao ouvinte receptor auditivo. A partir disso outra distinção entre voz e leitura que se sente na intensidade da presença do intérprete, emissor. Essa diferenciação entre poéticas orais coletivas e leitura-escritura individuais é, também, apontada por Roger Chartier (2009) numa visão da historicidade dos atos e modos de leitura, já que “A oposição entre visualização e oralização é, sem dúvida, o indicador mais manifesto de uma diferença nas maneiras de ler. Mas, obviamente, a leitura silenciosa não é única e as capacidades daqueles que a praticam podem variar consideravelmente” (CHARTIER, 2009, p. 84).
Dessa recepção e leitura que se delineiam por meio dos poderes sensoriais da copresença corporal, podemos identificar tipos de performance apresentadas Paul Zumthor (2014). A performance completa é aquela em que se tem uma visão global do ato poético enunciativo acompanhada da audição. Essa tipificação vai polarizar, fortemente, com aquela leitura silenciosa e solitária. Outro tipo de performance se processa pela ausência de um dos elementos mediadores da percepção, que é o caso do ato auditivo de um disco ou rádio no qual se perde a esfera do olhar em cima da performance. Reduz-se nesse caso a polaridade entre performance e leitura. O grau zero ou mais fraco da performance se dá na leitura solitária e apenas visual. Nessa última, Zumthor instiga-nos a pensar sobre origem de uma mudez e/ou surdez não-sensitiva/performativa que veio dominar a nossa “educação literária”, uma vez que “A escrita, no curso da luta em que ela se empenhou, por alguns séculos, para garantir sua hegemonia na transmissão do saber e expressão do poder, deu-se como alvo confesso a suspensão ou a negação de todo elemento performancial na comunicação” (ZUMTHOR, 2014, p. 68-69).
Posto esses tipos de performances e situações comunicativas das poéticas, visualizamos códigos culturais de contraste das práticas de letramentos em espaços escolarizados e não-escolarizados. Daí, os letramentos literários de reexistência não-escolarizados, por meio de poéticas das vozes que emergem do sarau/slam, desloca-nos para concebê-los como “comunidades interpretativas”, na qual seus membros frequentadores (escritores-poetas-performers, leitores-ouvintes-espectadores) se envolvem com recepções geradoras de múltiplos prazeres estético-corporais num sentido global e amplo das práticas sociais de uso das linguagens e da língua. Esse conceito de “comunidades interpretativas” é concebida por Stanley Fish (1980) e é citado pela pesquisadora doutora Marta Passos Pinheiro (2004). Desse modo, compreende-se que a comunidade interpretativa é “uma entidade pública e coletiva composta por todos aqueles que partilham uma mesma estratégia de interpretação, um mesmo modelo de produção de textos ou que contam a mesma história acerca do mundo” (PINHEIRO, 2004, p. 112).
Com isso, os multiletramentos intersemióticos das/nas performances vocais e políticas dos saraus/slams são reinvenções/ressignificações da linguagem central da agência escolar ou de outras instituições influenciadoras da comunidade interpretativa, cujos sentidos semânticos e sensíveis seguem trilhas desviantes e à deriva daquela ordem institucionalizada pela cidade letrada (RAMA, 1998 apud TENNINA, 2017). Assim, quando o Sarau/Slam de Literatura Periférica e seus frequentadores (agentes de letramentos de reexistência), ao assumirem a voz como tática crucial para ocupar o campo literário da cidade criativa em espaços da rua, identifica-se a historicidade da vocalidade num espectro de potências e valores sensíveis-políticos que transbordam os enquadramentos rígidos e fixos da norma letrada, implicando ações identitárias “nômades” e à borda da produção cultural dos recitais das academias de letras (espaços institucionalizados pelo poder hegemônico no sistema literário).
Essa prática literária por meio da poética-performance-vocal é abordada por Lucía Tennina (2017) num direcionamento para além do termo “oralidade” que muitas vezes confunde o olhar e o refletir sobre a poesia na cena periférica do sarau e do slam. Essa autora retoma, então, aquela historicidade da linguagem vocal, citando Zumthor (2001), em sintonia com o corpo presente para apontar que,
A palavra que circula nos saraus da periferia dá conta de um corpo, de um momento e de um lugar que o conceito de “oralidade” não consegue assinalar. A palavra falada que circula nos saraus é letra em estado incorporado, que manifesta toda uma vida na periferia. Trata-se de vozes que se atualizam por diferentes meios, em diferentes situações de performance, mas que nunca se fixam, sempre estão de passagem, em um movimento nômade, segundo Zumthor (2005), em um processo de transformação constante. (TENNINA, 2017, p. 141).
O leitor, o escritor, a leitura, a escrita na comunidade de sarau/slam estariam em estado ritual de “movência”, ou “reiteração”, que atravessam infindáveis “variações criadoras” de múltiplos letramentos, múltiplas intersemióticas, transformando seus corpos “nômades” em permanente “reexistência” e resistência às padronizações ideológicas e físicas que são impostas pela força hegemônica do campo/sistema literário cultural na cidade-capital. Dalcastagné (2012) caracteriza esse grupo hegemônico na literatura contemporânea brasileira, por meio de vasto levantamento das obras premiadas e publicadas por grandes editoras, sendo de uma classe elitizada, branca, masculina de profissionais privilegiados no domínio dos meios de comunicação e da ciência acadêmica.
Uma leitura de performance/voz poética marginal
Imersos nesse âmbito da crítica à literatura contemporânea contestada, miramos numa leitura-performance-poética da escritora Nívea Sabino, no evento do Slam Estadual (etapa final da seletiva para o Slam Nacional) de 2016 em BH, em que sua voz lírica nos indaga, como leitor frequentador da comunidade interpretativa, a partir dos versos:
Seguimos na trilogia do não faz mal:
- mulher, negra e pobre!
Ei, me diz, fala pra mim: Qual é a dor que te comove!?
(SABINO, 2016, p. 78)
Essa estrofe de um dos poemas da escritora Nívea Sabino aponta para vozes, corpos e o espaço social em disputa por inclusão na sociedade e na literatura contemporânea. Ainda persiste a exclusão das vozes e corpos mulheres negras e pobres para “Quem insiste no ‘não’: / - ‘Não há machismo’ / - ‘Não há racismo...’ / Não há é na sua rotina, de ir e vir, vivência pra te mostrar!”, continua a Sabino na quarta estrofe desse texto selecionado para nossa leitura analítica.
O eu-lírico da poeta se posiciona no combate às violências patriarcal-masculina e étnico-racial sofrida pelo corpo daquela “mulher, negra e pobre!” do segundo verso. E no espaço da rotina societária, percebe-se uma estratégia de busca de legitimidade pela experiência vivida pela autora que foi adotada por Carolina Maria de Jesus ou Ferréz em suas obras literárias. Isso é indicado pela pesquisadora Regina Dalcastagnè, (2012) da seguinte forma:
A autora de Quarto de Despejo [...] compreende sua posição periférica no campo literário, adotando estratégias que permitam superá-la, sobretudo pela valorização da experiência vivida e da autenticidade discursiva. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 47);
Ferréz também busca se legitimar via autenticidade – na contracapa de ninguém é inocente, ele diz ‘morar dentro do tema’ [...] apresenta-se [...] como aquele que briga nas bordas do campo literário. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 45).
Essa legitimação vivencial e corporal, é reiterada pela poeta que convoca a atenção do leitor, o público, recitando “Vem cá / cola ni mim / vão dar um rolezinho pro cê sentir: / - Sentir na cara, ...a negligência! / Sentir na cara, ...a indiferença! / Sentir na cara, ...a violência!”. Nesses versos, retomam-se fatos ocorridos cidades de segregação e higienização racial nos ambientes de shoppings quando se proibiu a entrada de grupos de jovens negros em shoppings para fazerem passeios que ficaram conhecidos como “rolezinhos”.
Na performance poética ao vivo, ou no vídeo acessível no site youtube, o “sentir na cara, ...” é seguido de um gesto de tapa com as mãos que a performer faz em sua face, impactando a recepção do leitor-público, reforçando que “a performance é o ato de presença no mundo e em si mesma. Nela o mundo está presente” (ZUMTHOR, 2014, p. 67).
Essa variável da segregação urbana, do “rolezinho” nesse poema, é pertinente na elucidação dos espaços possíveis na Literatura Contemporânea analisado pela Regina Dalcastagnè (2012), uma vez que a “urbanização, desterritorialização, transformações nas esferas pública e privada, segregação [...] são alguns elementos que, combinados entre si, podem ajudar a entender melhor a configuração espacial da narrativa dos nossos dias” (p. 111).
Dessas segregações sofridas pelos corpos femininos e negros, Nívea Sabino recoloca a memória de resistência e insubordinação nos versos por inclusão e igualdade: Olha bem / se eu tenho cara / de quem viria aqui fazer versinhos pra te divertir. / Direitos iguais é que vim pedir. / É que Rosa Parks se recusou sentar pra eu chegar aqui, onde estou / Carolina de Jesus, escreveu sua rotina em papéis e revista que sequer ela os tinha, resistiu da maneira que conseguia / Cláudia, não houve quem não viu que o homem arrastou3.
A poeta, nesses quinto e sexto estrofes, retoma a resistência da mulher negra, escritora e pobre trazendo a memória histórica e contemporânea de três mulheres negras pobres: Rosa Parks (negra ativista nos EUA), Carolina Maria de Jesus (escritora negra), Cláudia (moradora negra de favela no RJ).
Eu,
eu permaneço de pé
armada pela palavra
reverenciando gerações passadas
representando milhões de minorias diariamente silenciadas (FONTE?)
A poética de Sabino completa e demarca aí uma ancestralidade negra e feminista em sua escrita contemporânea, o que reforça o dito por Dalcastagnè em sua crítica à Literatura Contemporânea pelo “constrangimento” ao seu espaço tendo em vista a ocupação de seu território contestado por,
corpos silenciados, domesticados, esquecidos nos quartos de despejo; corpos insubordinados, que insistem em ocupar lugares que não lhes são destinados; corpos que negam o discurso alheio sobre si – são esses corpos, cheios de marcas e rasuras que preenchem nossas cidades, e que podem dar sentido à nossa literatura (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 144).
Esse sentido literário de que “Minha poesia hoje pede passagem é pra mulherada [...] pra ver se atinge a meta máxima: o dia em que TODAS SERÃO LIVRES”, talvez, seja um verso-janela que a Nívea Sabino abre e que a literatura se transforma em ação coletiva num sarau ou slam. Nisso, a poeta, o sarau-slam, provocam nos frequentadores um processo de inclusão/democratização do fazer literário e do direito à literatura no cotidiano dessa cidade, que é segregadora espacialmente de corpos e vozes advindas das minorias políticas, sociais, identitárias e étnico-raciais. A partir dessa leitura da letra e da voz performática da Nívea Sabino, podemos adentrar no elemento político-estético da Literatura Marginal Periférica da crítica social às discriminações e desigualdades de gênero, raça e econômica, que é vivida na pele por corpos femininos, pobres e negros.
Tal perspectiva das vozes/performances poéticas dos saraus/slams aproxima esse movimento à cultura Hip-Hop que também, desde os idos de 1980-1990, usa a linguagem tática de crítica ao poder dominante das classes burguesas e a todas desigualdades enfrentadas pelas classes populares moradores das periferias nas cidades. Para isso, semelhante ao Movimento de Literatura Marginal, segundo Lucía Tennina (2017), citando Moassab (2008), o Hip-Hop através do rap “assume posição contra os modos hegemônicos de produção de conhecimento atravessados pela escrita, e propõe a palavra falada como um meio de formação” (TENNINA, 2017, p. 79 apud MOASSAB, 2008).
Os eventos da realidade violenta das desigualdades sociais, ao serem transpostos para a forma da voz e da letra nas performances poéticas dos saraus/slams de periferia, tornam-se elementos sensíveis que deslocam o leitor para letramentos emancipadores, praticando-os em seu corpo em meios às demandas do cotidiano, e, assim, contribuindo para sua formação de leitor-escritor.
Referências
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[Recebido: 17 set. 2019 – Aceito: 22 jan. 2020]
1 Doutorado em Estudos da Linguagem (CEFET-MG/2019). Atuou Grupo de Pesquisa em Educação e Culturas-EDUC (PPGED PUC-MG). Professor do Ensino Médio.
2 Essa etnografia urbana foi realizada pelo grupo de pesquisa Educação e Culturas (EDUC) da Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) sob orientação e coordenação da professora doutora em antropologia Sandra Pereira Tosta nos anos 2014 e 2015.
3 É um trecho do mesmo poema analisado aqui e que foi publicado na 1ª edição do livro de Nívea Sabino na página 78.