BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
109
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
POESIA: EMOÇÃO E CONHECIMENTO
POETRY: EMOTION AND KNOWLEDGE
Elisângela Maria Ozório (SEDUC-SP)
1
Resumo: Pensar a educação pelo sensível incentiva a pensar sobre a poesia e sua capacidade de
despertar emoções que atingem a razão. O presente artigo pretende refletir como a linguagem da
poesia apresenta uma voz que recria o mundo de maneira que o leitor o sinta, tornando-o seu próprio
mundo. Para isso, busca-se na catarse segundo o filósofo Aristóteles (2004), a fonte de conhecimento e
de prazer que a poesia excita, ao passo que, em Paul Zumthor (2007), observa-se a presença de uma
voz poética que estabelece um vínculo com o eu-leitor. O vínculo entre o eu lírico expresso na voz
poética com o eu-leitor provoca uma nova forma de ver o mundo, a partir de um novo conhecimento.
O poema “Um corpo sobre a areia”, de Leonardo Tonus (2018), concede meios de perceber como a
voz poética passa a ser a voz do eu-leitor que a vivencia e incorpora, desenvolvendo pela emoção
recém-sentida um novo olhar sobre o mundo contemporâneo, analisado aqui como o submundo. Além
disso, o artigo trata rapidamente sobre a alteridade e sobre a intertextualidade em Leonardo Tonus
(2018).
Palavras-Chave: Poesia. Voz. Conhecimento.
Abstract: Thinking education by the sensible encourages thinking about poetry and its ability to
arouse emotions that reach the reason. This article aims to reflect how the language of poetry presents
a voice that recreates the world in such a way that the reader fells it, making it his own world.
According to the philosopher Aristóteles (2004), catharsis is the source of knowledge and the pleisure
poetry excites, whereas in Paul Zumthor (2007), there is the presence of a poetic voice that establishes
a bond with self reader. The link between the lyrical self expressed in the poetic voice and self reader
provokes a new form of seeing the world, from a new knownledge. The poem “Um corpo sobre a
areia”, by Leonardo Tonus (2018), provides ways of understading how the poetic voice becomes self
reader voice who experiences and incorporates it, developing a new look by the newly felt emotion the
contemporary world, analized here as the underworld. Besides that, the article briefly deals about the
alterity and the intertextuality in Leonardo Tonus (2018).
Keywords: Poetry. Voice. Knowledge
A poesia corresponde a uma arte que resgata a liberdade da criação, da emoção e do
conhecimento, sendo que tal liberdade a transforma em uma linguagem que pode transitar por
todas as outras manifestações artísticas, o que suscita a afirmação de Décio Pignatari: “A
poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura”
(PIGNATARI, 1981, p. 01). De acordo com o poeta e crítico literário, a poesia não pertence a
nenhuma arte específica, mesmo que seja estudada na literatura, porque, ao final, pertence a
todas elas; o que gera o risco de afirmar que a poesia é em si uma arte específica, posto que
sua capacidade de representação provoca e produz uma espécie de conhecimento do outro e
da própria identidade. Em outras palavras, a poesia consiste em uma arte de representação,
cuja palavra emitida se transforma em matéria concreta e palpável para o leitor que a “lê”
inicialmente por meio das emoções, mas que, posteriormente, atinge o conhecimento. O
1
Doutorado em Letras/ Teoria Literária (UNESP/2018), integra o Grupo de Pesquisa Estudos da Poética:
Interconexões Diacrônico-Sincrônicas na Poesia Brasileira e Portuguesa (PUC/SP). Professora de Educação
Básica II - Português do Secretaria de Educação do Estado de São Paulo , Brasil
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
110
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
diálogo do leitor com a leitura de poesia leva em conta que um dos traços de liberdade desta
arte implica tanto a leitura silenciosa de um texto escrito, como a leitura de uma audição de
uma canção. Paul Zumthor, crítico que pesquisava a canção e sua condição de recepção plena
pelo corpo que a ouve, explica que não existe realmente uma leitura silenciosa e muda, ainda
que o leitor se encontre isolado em um cômodo, visto que toda leitura pressupõe uma voz
presente no texto:
Na leitura, essa presença [presença corporal do ouvinte e do leitor] é, por
assim dizer, colocada entre parênteses; mas subsiste uma presença invisível,
que é a manifestação de um outro, muito forte para que minha adesão a essa
voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto
de minhas energias corporais. Entre o consumo, se empregar essa palavra, de
um texto poético escrito e de um texto transmitido oralmente, a diferença
reside na intensidade da presença (ZUMTHOR, 2007, p. 68-69).
Paul Zumthor desenvolveu um trabalho sobre a poesia oralizada e vocalizada, em que
a presença da voz poética se torna mais sensível e concreta devido à presença do canto. Desse
modo, a poesia cantada localiza-se em uma esfera de altíssima qualidade, porque o leitor-
ouvinte recebe a mensagem da canção no tempo agora e no espaço aqui concomitante e de
forma plena. A isso o crítico chamou de performance e, por causa disso, explica que poesia
escrita também tem um lado performático, um tanto mais atenuado, porquanto a ausência da
voz cantada enfraquece a voz poética. Todavia, atenuada, a voz poética permanece lá, no
texto escrito, juntamente com a performance: a recepção da mensagem poética. Logo, a voz
do texto, a voz poética, configura-se no caminho da vivência e da experiência do mundo
literário-poético, porque é esta voz que permite que a palavra antes tirada das relações
comunicativas cotidianas agora se transforme em matéria e/ou objeto concreto de experiência,
uma chance de conhecer o mundo ou o universo possíveis, sendo que tal conhecimento condiz
com uma espécie de outro que complementa a si mesmo. A voz poética figura, dessa maneira,
no outro e no eu. Para compreender melhor essa proposição, lembrar-sede uma citação de
Mikhail Bakhtin (2006) acerca da construção da identidade da personagem. Segundo o
teórico, a identidade constrói-se a partir da presença de um outro, que é no outro que o eu
encontra parâmetros para a definição e a delimitação de si:
Partindo de si mesmo, sem nenhuma mediação do outro que ama, o homem
nunca conseguiria falar a seu próprio respeito na forma e nos tons
hipocorísticos, em todo caso estes não exprimiriam, de modo algum, o
efetivo tom volitivo-emocional do meu autovivenciamento, da minha relação
interior imediata comigo mesmo, seriam esteticamente falsos: é de dentro de
mim que eu menos vivencio a minha “cabecinha” ou a minha “mãozinha”,
mais propriamente a “cabeça”, eu ajo precisamente com a “mão”. Na forma
hipocorística só posso falar de mim em relação ao outro, exprimindo através
dela a atitude real desejada do outro para comigo (BAKHTIN, 2006, p. 47).
Apesar de Bakhtin explorar a identidade da personagem no romance, ajuda a
compreender a questão da alteridade como um fator essencial na formação do eu, posto que a
identidade precisa de uma fonte de comparação para existir, isto é, o modo pelo qual o eu se
conhece decorre através do olhar do outro, porque, por meio do olhar alheio, capta-se o
verdadeiro eu. O eu depende do outro, porque necessita de um modelo do qual estabeleça
padrões de comparação. Não interessa, neste artigo, se os padrões sofrem valores de
julgamento do outro, e sim que, a partir de quem é o outro e de como a imagem do eu é
projetada em seu olhar que é possível construir a identidade e a percepção da existência. As
ideias de Mikhail Bakhtin (2007) permitem que, ao pensar na poesia a relação do outro e do
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
111
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
eu, a sustentação de dois movimentos: a voz da poesia configura-se no outro, ao passo que
o mundo que recria fundamenta-se na alteridade da voz poética. Ambos movimentos
culminam na vivência do leitor que se dá por meio da poesia.
A alteridade não será amplamente tratada como foco do artigo, mesmo que se façam
referências a sua presença iminente no trabalho de um poema, porque ela auxilia a entender
como se constrói o conhecimento que se origina da leitura de poesia. O artigo objetiva a
observação de como a voz da poesia corresponde a um tipo de conhecimento. Para isso, deve-
se lembrar o filósofo da Grécia Antiga Aristóteles (2004), no livro Poética. Apesar de ser uma
leitura um tanto defasada, porque o livro analisa a literatura durante o seu tempo, Aristóteles
chama a atenção para a capacidade de purificação das emoções que a linguagem da poesia
desperta:
Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais.
Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos
outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela
imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos
sentem prazer nas imitações. Uma prova disso é o que acontece na realidade:
as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando
as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as
reproduções dos mais repugnantes animais e cadáveres. A razão disto é
também que aprender não é agradável para os filósofos mas é-o
igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa
aprendizagem em menor escala. É que eles, quando veem as imagens,
gostam dessa imitação, pois acontece que, vendo, aprendem e deduzem o
que representa cada uma, por exemplo, “este é aquele assim e assim”.
Quando, por acaso, não se viu anteriormente o objeto representado, não é a
imitação que causa prazer, mas sim a execução, a cor ou qualquer outro
motivo do género (ARISTÓTELES, 2004, p. 42-43).
A arte parte da imitação, contudo, a imitação não significa uma cópia exata dos
objetos da realidade. Na verdade, a imitação artística copia o que poderia se constituir numa
realidade, d termos um real criado e representado. Desse modo, a poesia acompanha a
criação de um real, fazendo imitações que despertam um certo prazer advindo da emoção
sentida; logo a leitura de uma poesia conduz à experimentação da emoção representada, em
que o leitor vive a imitação e o prazer despertado por ela, resultando na liberação de energias
emocionais e provocando a catarse. A catarse, segundo Aristóteles, não finda na liberação das
energias emocionais, e sim no conhecimento e no aprendizado que ela instigou. Ao sentir o
representado, o leitor começa a conhecer a si mesmo, a construir e a compreender a própria
identidade. Verifica-se que, apesar de não se nutrir a problemática da alteridade no artigo,
as reflexões recaem sobre ela, porque o eu-leitor vive a experiência do outro que é a
representação contida no poema. A alteridade compõe-se de uma fonte de catarse, de
aprendizado e de conhecimento que falta ao eu-leitor.
“Um corpo sobre a areia”: voz poética e conhecimento
O caminho para alcançar a catarse aristotélica acontece pela voz poética que fala o que
sente e o que o eu-leitor gostaria de ouvir. O Professor Doutor Leonardo Tonus (2018), na
obra Agora vai ser assim, explora a voz da poesia que representa mundos e submundos da
atualidade. A obra apresenta uma poética que representa o mundo marginalizado e
aparentemente antipoético, porque falta-lhe o belo que tanto se cogita ser elemento
fundamental para o poema. A voz poética desenvolvida por Leonardo Tonus (2018) capta o
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
112
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
cotidiano das classes sociais que se encontram entrincheiradas ora por convenções sociais, ora
por preconceitos, além de que essa captação é transmitida por uma voz poética seca, quase
desnudada de metáforas, com um vocabulário direto e sem volteios, mas que, ao mesmo
tempo, lamenta a realidade ao representar o mundo, o seu submundo. O poema “Um corpo
sobre a areia” (2018) exemplifica claramente essas questões. Antes, todavia, de adentrar o
poema, salienta-se que o vocábulo submundo dito indica a sociedade marginalizada, que não
usufrui das riquezas ou que se encontra na ilusão de que sua comunidade está desprovida de
problemas econômicos, morais ou éticos. Retornando ao texto de Leonardo Tonus (2018),
lemos uma voz poética que parte de duas ações opostas que se defrontam e formam um todo:
a negação e a não aceitação. A ação de negar surge de maneira mais nítida, porque a voz do
eu lírico já determina de chofre o que deveria ser e o que não deveria ser belo e, por
conseguinte, a cogitação do material poético:
Não há poesia no estupro.
Não há poesia no racismo.
No feminicídio não há poesia.
A faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca.
Em seu caminho de lâmina. Em sua função de faca (TONUS, 2018, p. 14).
O advérbio de negação “não” perpassa o poema e indica o conceito antiquado de
poesia como uma arte do belo; subentendendo-se que a arte da poesia não reconheceria o feio,
o chocante e a violência como temas. Em contrapartida, se o feio e a violência não integram a
poesia, por que estão no poema de Leonardo Tonus (2018)? A negação do belo passa a
admitir quaisquer tema, situação ou emoção como ideias da poesia. Na literatura moderna, o
belo fora questionado e rompido a partir do momento em que o poeta torna tudo elemento
passível de representação; isso é conferido no poema “Não vagas”, de Ferreira Gullar
(2004), em que o eu lírico fala que o poema está fechado em si mesmo e não admite que as
crises econômicas e sociais, como a miséria e a fome, adentrem o universo artístico. Mas
Ferreira Gullar realiza justamente o contrário, porque representa a crise do cotidiano:
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão (GULLAR, 2004, p. 162).
Os problemas do cotidiano parecem não ser material de poesia, entretanto, ao
representar tais problemas, transformam-se em matéria artística. O ato de dizer o que não é
poesia e o que é salienta a ação de negação e não aceitação, porque, no poema de Ferreira
Gullar (2004), a negação acontece por meio da hipótese de que a arte não trataria do feio, ao
mesmo tempo que a não aceitação faz com que o feio seja poético. Entre Ferreira Gullar
(2004) e Leonardo Tonus (2018), ocorre uma aproximação das ações dos eus líricos que usam
sua voz para determinar que, no poema, vagas para a recriação do submundo, criticando a
imposição de um campo cerzido em uma arte tão libertária quanto a da poesia.
A poesia de Leonardo Tonus (2018) e de Ferreira Gullar (2004) concede um tipo de
educação que se realiza pela via da linguagem poética; porquanto conhecemos o submundo a
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
113
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
partir da vivência que o olhar do eu lírico o desenha. O olhar do eu lírico passa a ser o olhar
do eu, porque ele não através dos olhos do outro, nem por seu reflexo, e sim com o seu
olhar próprio, incorporando-os; assim como Mikhail Bakhtin (2007) teoriza sobre a criação da
identidade: o eu conhece-se, porque se no olhar do outro. O “ver-se” no olhar do outro não
corresponde a um mecanismo nem de atravessar, nem de se refletir, mas de incorporar a
imagem como se ela fosse do eu. Quando o eu lírico criado por Leonardo Tonus (2018) diz
que não beleza na violência, o eu-leitor enxerga, como o eu lírico, a própria violência: “A
faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca”. Nesse verso, sente-se a lâmina cortar a
carne do corpo. Não se trata mais de uma mulher desconhecida, porque o leitor agora,
tomando o olhar do eu lírico, toma para si o corpo cortado. Desse modo, trata-se de que a
violência não consiste apenas de uma negação do material da poesia, porque consiste de uma
matéria sensível e capaz de aprendizado, porquanto a dor da mulher é a dor do eu lírico e é a
dor do eu, que é o leitor. Novamente verifica-se a citação do filósofo antigo Aristóteles sobre
a condição catártica da poesia, uma vez que a catarse não significa pura e simplesmente a
purgação de emoções, pois a catarse se refere à vivência de emoções que atingem o
aprendizado e, consequentemente, o conhecimento. A poesia de Tonus (2018) entrega ao
leitor justamente o conhecimento do mundo marginalizado, transformando o hipotético não
poético, o não belo, em palavra concreta para o leitor, que é o eu, aprender a ver. Conforme
Carlos Felipe Moisés (2007), a poesia ensina o leitor a ver, indiferentemente se o visto fora
enxergado, pois ela ensina a ver de outra perspectiva, como se fosse a primeira vez: “O
excêntrico modo de ver, ensinado pela poesia, incita-nos a encarar o objeto (ou coisa ou ideia)
sobejamente visto, como se nunca o tivéssemos visto antes” (MOISÉS, 2007. p. 20).
A visão da poesia é ligada diretamente à sensação que ela provoca, a catarse; afinal o
leitor olha não como mais uma informação de casos de violência, e sim como a violência é, de
dentro dela, da faca que corta o corpo da mulher, da mulher que sente a lâmina, do negro que
é rechaçado por sua etnia. Tudo se transforma em corpo material e de sensibilização; pela
primeira vez, o leitor vê a violência.
O texto de Leonardo Tonus (2018) prossegue com o ritmo de desnudamento do real, o
que não é belo, nem poético, e, ainda assim, fazendo-se de poesia: “Não poesia nos
genocídios”; “No refúgio não epifanias” (TONUS, 2018, p. 14). Todavia, aos poucos, a
voz lírica que, antes, havia dito aquilo que não é, o ato de negação, cede para uma voz que
afirma a sua identidade: “Eu perdi a voz/ ao sair” (TONUS, 2018, p. 14).
A perda da voz do eu rico não se faz da ausência de voz, porque não se ausenta, se
presentifica em um tom de desesperança e de distopia, como ouvimos e lemos na voz poética
escrita e cantada pelo compositor-poeta Renato Russo, líder e intérprete da banda brasileira de
rock Legião Urbana. Renato Russo, no álbum A tempestade ou o livro dos dias (1996),
apresenta uma voz poética que representa a dualidade em constante diálogo de um real criado
na canção e do sonho do eu poético, sendo que, no caso do real, a imagem figura-se sempre
como a distopia, enquanto o sonho, como a utopia. Seu eu poético ainda transita por temas
sociais e existenciais que podem se debater e se chocar. Por ser canção poética, a voz da
poesia não se perde, com o eu lírico de Leonardo Tonus (2018), porque se encontra no texto
musical, o que lhe permite ganhar mais força de expressão. Em suma, o real em Renato Russo
é construído sobre a imagem da distopia, em que o caos, o feio, a desordem, a solidão, a
violência e a indiferença sobrepõem-se a tudo, restando um mundo em decadência. No poema
“Um corpo sobre a areia” (TONUS, 2018, p. 14-15), observa-se a mesma ideia construtiva da
distopia conforme Renato Russo, pois o mundo não existe como uma unidade, porquanto
sobrevive de indivíduos marginalizados e violentados, posto que a mulher estuprada, o
negro discriminado, os mortos em massa, as pessoas traficadas, o corpo de uma criança
refugiada e encontrada morta na areia:
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
114
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Um corpo sobre a areia
que, entre meus dedos silenciosos,
escorrega
oco. (TONUS, 2018, p. 15)
É defronte ao mundo distópico, cuja criança morta, que remonta à foto de uma criança
afogada após fugir da crise econômica-social da Síria, em 2015, que o eu lírico perde a voz e
ganha a certeza de que se encontra solitário:
Não houve abraços na chegada.
Ninguém esperava por mim.
Ninguém me acudiu ao me perder
pelas ruas de uma cidade
que ainda não era cidade (TONUS, 2018, p. 14).
O eu lírico não encontra companheiros, ninguém vê seu sofrimento, ninguém o espera,
porque ninguém tem esperança, e, sem ela, o mundo torna-se o submundo, a distopia que
aparece na canção de Renato Russo. O verso “Ninguém esperava por mim” causa desconforto
e tristeza, posto que o pronome indefinido “ninguém” articulado com o verbo “esperar” cria o
abismo entre as pessoas. “Ninguém” mostra que o ser humano não se comporta com
humanidade. Sem o humano, sem a humanidade, o que sobre condiz com um espaço e um
tempo de distopia.
Diferentemente de Leonardo Tonus (2018), o verso “Ninguém esperava por mim”,
notado como o auge da distopia no texto, contrasta-se com a canção “Esperando por mim”
(1996), de Renato Russo, uma vez que, apesar de representar o real distópico, a canção
presenteia o leitor-ouvinte com a possível utopia, com a esperança, passíveis de realização:
E o que disserem
Meu pai sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Minha mãe sempre esteve
esperando por mim
E o que disserem
Meus verdadeiros amigos
sempre esperaram por mim
E o que disserem
Agora meu filho espera por mim
Estamos vivendo
E o que disserem
Os nossos dias serão para sempre (RUSSO, 1996).
No caso da canção, o tratamento temático fixa-se na problemática da existência,
porque o eu poético se apresenta como um ser doente, que se desgasta com a iminência da
morte e a única esperança atrela-se à certeza de que sua presença física neste mundo foi
aguardada e isso garantirá a eternidade de sua existência. Em Tonus (2018), a ausência da
espera provoca o fim da eternidade como o tempo utópico em Renato Russo; afinal, a certeza
do eu lírico de “Um corpo sobre a areia” consiste no isolamento e na solidão, ninguém tem
esperança, não há a projeção de um espaço de utopia.
Enquanto o eu poético de Renato Russo tem voz, porque esta não se suspende,
inscreve-se na presença da perenidade, na canção, a voz do eu lírico em Leonardo Tonus
(2018) perde-se e encontra o silêncio na grande cidade:
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
115
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Eu conheci o silêncio.
Eu me esqueci do silêncio (TONUS, 2018, p. 15).
A voz do eu lírico cede o som para que a cidade se torne o centro do poema: “Ela era
um plano./ Um traçado de planos que entre si formavam ângulos,/ paralelas e
perpendiculares”. Nessa cidade, as linhas retas e gélidas acentuam a ausência de empatia e a
presença da solidão. Na cidade que impossibilita a habitação de “um nome”, em que o eu
lírico perde a voz e ganha o silêncio, o eu-leitor também perde a identidade, porque, como
vimos em Mikhail Bakhtin (2007), a identidade existe somente a partir do outro; mas, no
poema, o outro está ausente, porquanto corresponde a um “ninguém”.
O eu lírico ganha o silêncio, mas é neste silêncio que a voz se sobressai, é retomada:
“Eu me esqueci do silêncio”; a poesia faz seu retorno às ações de negação, nega-se o silêncio,
e de não aceitação, não se aceita o silêncio. Negação e não aceitação compõem a poesia de
Leonardo Tonus (2018), porque, a partir disso, o texto começa a se realizar.
Últimas palavras
No início deste artigo, cogitou-se a poesia como uma arte libertária, que explora e
atinge o conhecimento que se efetua pela incorporação do leitor na voz do eu lírico. Tal voz
desperta e representa meios de se ver de maneira diferente e nova o mundo habitado.
Conforme Octavio Paz (1982), a poesia fornece o conhecimento, porque atua em diversas
áreas, de diversas formas, e pode partir de uma recriação de algo grandioso, como algo
pequeno, da alegria e da morte:
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este
mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à
viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular.
Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela
angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo,
conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente.
Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio
resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a
consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento,
emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do lculo.
Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras;
criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da
Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do
paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão.
Experiência inata. Visão, música, mbolo. Analogia: o poema é um caracol
onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas
correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral,
exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos
escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e
minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta
todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é
uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda
obra humana! (PAZ, 1982, p. 15-16).
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
116
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
A explicação de Octavio Paz (1982) permite compreender que a atuação da poesia é
livre, por isso, essa liberdade instiga uma forma de adquirir conhecimento proveniente da
experimentação e da sensação das emoções que levam à reflexão e à razão. Toda a forma de
conhecimento presente na poesia depende de uma voz poética, vinda do eu lírico, que se torna
capaz de transformar o escrito ou oral em objeto material e concreto para que o leitor ou
ouvinte possa incorporar e vê-lo com outros olhos. Não os olhos do eu lírico, nem os olhos do
leitor, mas sim os olhos unificados na nova percepção do mundo.
A poesia de Leonardo Tonus (2018), “Um corpo sobre a areia”, possibilita a vivência
do novo olhar, em que as violências cotidianas do mundo contemporâneo são recriadas por
um eu lírico que nega e não aceita os limites que a ideia falaciosa de alguns escritores da
poesia procuraram criar, tampouco aceita a realidade torpe daqueles que se encontram à
margem do sistema social. Vive-se o olhar crítico do eu lírico, perde-se a voz e, ao migrar
para o silêncio da cidade, redescobre-se a voz, uma voz inquieta, não mais do eu lírico, nem
do leitor, e sim uma voz unificada e nova que quebra o silêncio e diz ou “rediz o que
incomoda, o que não aceita, a busca, no fim, de uma mudança.
A voz do eu lírico em ‘Um corpo sobre a areia” (2018) articula-se com outro poeta,
como Ferreira Gullar (2004), e outro compositor-poeta, como Renato Russo (1996). Ambos
representam que a poesia, uma criação livre, corresponde à representação do submundo, o
mundo dos marginalizados. Seus eus ricos e poéticos vivem o submundo, experimentam a
cada abandono o tempo e o espaço distópico. Em Gullar (2004), o eu lírico recria as
dificuldades de um país em constante crise econômica. Em Renato Russo (1996), a espera da
morte e a certeza da brevidade apresentam um eu poético que busca a todo momento o alívio
da utopia que se faz na eternidade. Em Leonardo Tonus (2018), o eu lírico representa o
olheiro que registra o aspecto feio das cidades, uma realidade de abandono e de morte, que
não espera ninguém, nem o tempo da utopia.
O Professor Doutor Fernando Segolin, em aulas ministradas no Programa de Pós-
Graduação, nível mestrado, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre os anos
de 2009 e 2011, explicara que a poesia corresponde a um texto que provoca o conhecimento
sobre o outro e, consequentemente, ao conhecimento de si mesmo. A poesia, portanto,
preenche as lacunas que o ser humano sente, complementa-o, sua alteridade está vinculada
com a alteridade do outro. Assim, ao pensar sobre a poesia de Um corpo sobre a areia”
(2018) ou brevemente na poesia de Ferreira Gullar (2204), “Não vagas”, e na canção de
Renato Russo (1996), “Esperando por mim” , constata-se que o “corpo sobre a areia” se
encontra diante do leitor, incomoda-o, despertando o desejo da revolta com o mundo. Em
contrapartida, o leitor é silenciado, porque o corpo “escorrega/oco” por seus dedos. O corpo
sobre a areia possibilita ao leitor aprender e conhecer o corpo que escapa, ao passo que este
corpo delimita sua existência silenciosa e solitária. A experiência do corpo alheio é o
reencontro com o próprio corpo. Tal reencontro consiste no conhecimento que o eu leitor
adquire sobre si e sobre o mundo. Nisso consiste a educação pelo sensível que a poesia
instiga: pelos olhos do outro, unidos aos olhos do leitor, a possibilidade de reviver o mundo
conhecido e agora renovado não cala o leitor, porque a sabedoria provoca a emoção e causa a
razão, assim como incentiva o ser humano a buscar a verdade e a mudança.
BOITATÁ, Londrina, n. 27, jan.- jun. 2019
117
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução: Ana Maria Valente. Lisboa: Gulbenkian, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. 476 p.
GULLAR, Ferreira. Não há vagas. In: ___. Toda poesia. 12. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2004. p. 162.
MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São
Paulo: Escrituras, 2007. 143 p.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2. ed. Tradução: Olga Savary. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1982. 368 p.
PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1981.121 p.
TONUS, Leonardo. Um corpo sobre a areia. In: ___. Agora vai se assim. São Paulo: Nós,
2018. p. 14-15.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 125 p.
Discografia
RUSSO, Renato. Esperando por mim. In: LEGIÃO URBANA. A tempestade ou o livro dos
dias. Manaus: EMI, 1996. 1 cd. Faixa 13. (4m 21s).
[Recebido: 30 set. 2019 Aceito: 21 jan. 2020]