BOITATÁ, Londrina, n. 28, ago.- dez. 2019
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
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ETHOS DISCURSIVO DA FIGURA DO
FREI DAMIÃO NA LITERATURA DE CORDEL
ETHOS DISCURSIVE OF FREI DAMIÃO'S
FIGURE IN CORDEL'S LITERATURE
Marcio de Lima Pacheco
1
Francisco de Assis Costa da Silva
2
Edilene Leite Alves
3
RESUMO: O objetivo do presente artigo visa investigar o ethos discursivo da figura do Frei
Damião presente na literatura de cordel. O estudo é orientado pelo questionamento: qual o ethos
do personagem Frei Damião e não do indivíduo histórico emerge da literatura de cordel?
Trabalhou-se com a teoria do ethos desenvolvida por Dominique Maingueneau. O corpus é
constituído pelos cordéis de Borges (2007, s/d), Cavalcante (1976), Silva (1997), Soares (1981)
e Mota (1980). Por fim, afirma-se que o ethos da figura do Frei Damião presente na literatura
de cordel reforça o caráter de identificação entre esse gênero literário e o povo brasileiro. Tanto
o cordel como a figura do Frei Damião são faces da poesia popular e de um ethos de
identificação entre a literatura e a realidade nacional, entre o texto poético e as características
mais profundas que constituem o povo brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Ethos. Frei Damião. Literatura de Cordel.
1
Pós-Doutorado em Letras Discurso (UERN)/ Doutor em Filosofia/Metafísica (PUC-SP)/ Mestre em
Filosofia/Metafísica (UFRN)/ Avaliador do INEP/MEC para os Cursos de Filosofia e Teologia/ Cursando
Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo- UNINCOR/ Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela
(FASA)/ Licenciado em Filosofia (UERN)/ Bacharel em Teologia Faculdade Católica Dehoniana/; Professor e
tradutor do: Latim, Grego e Hebraico/ Disciplinas que ministra no Doutorado e Mestrado: Filosofia da Linguagem,
Tópicos de Filosofia moderna Locke e os Medievais; Disciplinas que ministra graduação : Metodologia do Trabalho
Científico, Ontologia I e II, Filosofia da Linguagem, Antropologia Filosófica, Bioantropologia, História da Filosofia
Antiga e Medieval, Bioética, Biofilosofia, Teologia, Leitura e interpretação de Texto, Sociologia Jurídica e disciplinas
relacionadas a Pedagogia. Possui projetos de pesquisa que versam sobre: Paul Ricoeur, São Tomás de Aquino,
Tradução dos textos de Agostinho de Hipona, Fenomenologia da Religião, Moral Sacramental, Doutrina Social,
História da Igreja Medieval, Liturgia Cristã, Ética social e ética cristã, Participe do Grupo de Teoria Política
Contemporânea vinculado ao Departamento de Filosofia da UNIR. http://orcid.org/0000-0003-3902-2680 e
ResearcherID:Y-3516-2018. Professor Adjunto do Mestrado e da Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Rondônia E-mail: ppachecus@hotmail.com
2
Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana di Roma (2007). Mestre em Teologia Fundamental
pela Pontificia Università Gregoriana di Roma (2004). Possui graduação em Filosofia pela Faculdade Eclesiástica
de Filosofia João Paulo II (1993), em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1997),
graduação em Letras Clássicas: Português-Latim-Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(1998), Professor Adjunto do Mestrado e da Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). E-mail: diretor@cdscaico.com.br
3
Graduada em Letras Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e mestranda pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN. E-mail: eddileite@gmail.com.
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ABSTRACT: The objective of the present study is to investigate the discursive ethos of the
figure of Frei Damião present in cordel literature. The study is guided by the questioning: what
character of the character Frei Damião - and not the historical individual - emerges from cordel
literature? We worked with Maingueneau's theory of ethos. The corpus is constituted by the
cords of Borges (2007, s / d), Cavalcante (1976), Silva (1997), Soares (1981) and Mota (1980).
Finally, it is stated that the ethos of Frei Damião's figure present in the cordel literature
reinforces the character of identification between this literary genre and the Brazilian people.
Both the line and the figure of Frei Damião are faces of popular poetry and an ethos of
identification between literature and national reality, between the poetic text and the deeper
characteristics that make up the Brazilian people.
KEYWORDS: Ethos. Frei Damião. Literature of twine.
INTRODUÇÃO
A Análise do Discurso é um campo de estudo abrangente que nos possibilita a realização
de estudos no campo da inter-relação entre a linguagem, a literatura e a dimensão sociocultural.
Trata-se de uma área de pesquisa que se “constituiu em torno da questão da linguagem, depois
da língua e da história” (MAZIÈRE, 2007, p. 116). Dentro dessa área uma das possibilidades
investigativas é o ethos.
A noção de ethos discursivo é objeto de reflexão de diferentes pesquisas que
estudam a imagem do enunciador produzida no discurso (AMOSY, 2010). Essa imagem,
conforme Dominique Maigueneau (2005, 2008, 2014), é fruto de uma construção no discurso
em suas múltiplas relações com o outro (sujeitos e discursos) e emerge na articulação entre
variados elementos (verbais e não verbais, éticos e estéticos etc.), os quais necessitam da
incorporação do interlocutor para apreendê-la em um conjunto complexo de representações
sociais e culturais. Ou seja, a imagem que o público tem do orador antes de falar está
diretamente ligada à eficácia da apresentação de si mesmo que ele construirá durante o
intercâmbio. A capacidade do falante de refazer seu ethos anterior é, portanto, fundamental.
É importante notar que o ethos discursivo, embora se diferencie da tradição retórica, por
exemplo da retórica latina (Cícero, Quintiliano), não deixa de concordar com três ideias básicas
do ethos aristotélico, na qual o ethos é: a) uma noção discursiva, isto é, constitui-se por meio
do discurso, não sendo, portanto, uma “imagem do locutor exterior à fala”, (b) um
“processo interativo de influência sobre o outro” e (c) uma noção “[…] híbrida (sócio-
discursiva), tem um comportamento socialmente avaliado, que não deve ser apreendido fora de
uma situação de comunicação precisa”, própria de uma conjuntura histórico-social
(MAINGUENEAU, 2006, p. 60).
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Dentro da ótica da Análise do Discurso, os discursos são veiculados através de diversos
gêneros, favorecendo investigações das mais diversas naturezas que envolvem a linguagem,
seja na esfera do texto verbal ou do texto não-verbal. Toda manifestação da linguagem, de
alguma forma, está articulada a um determinado meio de comunicação, através dos mais
diversos gêneros textuais ou literários. Desta forma, é possível estudar os mais variados
discursos que compõem o mundo da linguagem, seja através da língua, da cultura ou da
literatura.
Entre esses estudos, destacamos o campo da literatura de cordel, que constituem um
vasto terreno para análise, diante das figuras sócio-históricas que fazem parte da cultura
nordestina religiosa, como o Frei Damião de Bonzano que representa, uma personalidade
significativa para os cristãos católicos nordestinos, movidos pela fé no beato andarilho.
Nessa linha de pensamento a literatura de cordel absorve muitas figuras representativas
da cultura sertaneja nordestina religiosa, cultural, social que, de algum modo, se configuraram
como sujeitos reconhecidamente imortais pelo verso e pela poesia cordelista, entre eles, três
figuras relevantes se destacam; o Padre Cícero Romão, o cangaceiro Virgulino Ferreira da
Silva, mais conhecido como Lampião, e o Frei Damião, o beato andarilho (COSTA, 1998).
Desse modo,
Frei Damião é a terceira figura de relevo de preferência dos poetas populares
e também dos leitores dos folhetos de cordéis. Perdendo somente para
Lampião, o Rei do Cangaço, e o Padre Cícero Romão, que tiveram uma
incalculável tiragem de folhetos (COSTA, 1998, p. 17).
A produção cordelística constam várias obras dedicadas a figura do Padre Cícero Romão
e do Frei Damião. Sobre este último, destacam-se os cordéis produzidos por Borges (s/d;
2007)), Silva (s/d), Soares (1981), Cavalcante (1976) e Mota (1980).
Como mais uma manifestação da linguagem, sob o viés literário, o discurso poético-
literário, através do cordel, pode nos servir não só de informação, mas também como forma de
persuadir o outro de diferentes formas, desde o seu comportamento, costumes, opiniões, e
outros fatores que possibilitem a construção de novos discursos. É preciso lembrar que o poema,
ao ser construído e colocado no seio da sociedade, possui diversas funções que vão além do
simples processo de comunicação, como a emoção, o convencimento, o encantamento, somente
proporcionados pela linguagem literária.
Dentro desse contexto, o objetivo do presente artigo é investigar e refletir sobre o ethos
discursivo da figura de Frei Damião presente na literatura de cordel. Diante disso, o estudo é
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orientado pelo questionamento: qual o ethos da figura do personagem Frei Damiãre.Não
procuraremos nos debruçar sob e não do indivíduo histórico, o missionário e sacerdote
católico Damião de Bozzano, mais conhecido como Frei Damião emerge da literatura de
cordel?
Como salienta Costa (1998) a produção, no campo da literatura de cordel em torno da
figura do Frei Damião é muito vasta. Apenas um estudo científico dessa natureza, não daria
conta de analisar tamanha produção. Por isso, optamos por um corpus composto por poucos
cordéis, mas capazes de nos oferecer uma dimensão necessária para compreender a construção
do ethos do referido personagem dentro da literatura de cordel. Assim, para esta análise nos
subsidiaremos nos cordéis escritos por: Borges (2007, s/d), Cavalcante (1976), Silva (1997),
Soares (1981) e Mota (1980). A noção de ehtos será com base nas ideias defendidas por
Maingueneau (2008a, 2008b, 2013, 2016, 1997), bem como as reflexões tecidas acerca do
pensamento de Cavignac (2006), Potier (2012) e Coutinho (1978).
Desse modo, partimos do princípio de que o ethos, na literatura de cordel, representa a
imagem do personagem que emerge dessa construção poética. É possível saber, ao certo, o que
o poeta cordelista ou o cidadão, em sua singularidade, que escreveu os versos poéticos pensa
ou endossa sobre o personagem histórico, como veremos na figura de Frei Damião. É preciso
entender, através do estudo e da análise, o que o cordel constrói da figura dentro do poema,
através do discurso, que vá além da conhecida figura histórica de Frei Damião.
Dentro desse contexto, notamos uma certa exaltação poética, heroica e mitológica do
Frei Damião, muitas vezes apresentado, principalmente, na região nordeste do Brasil, como
uma figura poética e religiosa, um missionário cristão, capaz de realizar milagres, digno de uma
devoção popular. Frei Damião se consagra por sua trajetória religiosa enquanto missionário
andante, defensores dos mais pobres e oprimidos, como podemos observar nos versos
apresentados logo abaixo:
É assim: Frei Damião
Simples, humilde e bondoso
No Nordeste, onde ele passa
Tem sido até milagroso
Tornou-se a maior figura.
(MOTA, 1980, p. 5).
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Desse modo, dividimos nosso estudo em três partes: a) Ethos discursivo, a partir da
teoria desenvolvida por Maingueneau, procurando ver como se apresenta o conceito e a
aplicação da categoria de ethos ao texto, considerando o cordel e sua relação com a oralidade;
b) Literatura de cordel, em que procuramos ver , de forma introdutória, a origem, o conceito de
literatura de cordel e sua influência no nordeste e em outras regiões do Brasil e c) a análise do
corpus, considerando a teoria de Maingueneau sobre o ethos, aplicando à figura do Frei Damião
pressente na literatura de cordel. Por fim, a título de conclusão, enfatizamos o reconhecimento
do nosso estudo como forma pensar e refletir sobre o cordel e sua relação com o imaginário
popular, entendendo a relação da figura simbólica de Frei Damião e a literatura de cordel.
ETHOS DISCURSIVO
O ethos é uma categoria de pesquisa que, desde o mundo antigo, tem contribuído para
o aperfeiçoamento dos debates na filosofia, na ética, nos estudos da linguagem e em outras
áreas do saber (QUELQUEJEU, 1983). Amossy (2016, p. 221), afirma que na sociedade
contemporânea existe um grande interesse e até mesmo um retorno dos estudos em torno do
ethos. Esse interesse é representado, por exemplo, pelo quadro figurativo de Benveniste
(1988,1989), pelos trabalhados de Kerbrat-Orecchioni (1980) sobre a subjetividade na
linguagem, pela noção de apresentação de si de Goffman (1959), pelas investigações, no campo
da literatura pragmática, de Brown e Levinson (1987).
Dominique Maingueneau (2008b, p. 11) observa que tanto nos estudos da linguagem
como também nas ciências humanas existe um interesse crescente pelo ethos. Para ele, esse
interesse está ligado a uma evolução das condições de exercício da palavra publicamente
proferida, particularmente com a pressão das mídias audiovisuais e da publicidade". Ainda para
o Linguista Francês (2013, p. 110), contemporaneamente, não se pode ver o ethos apenas como
um “estilo de vida”, da forma como os gregos antigos pensavam. Para ele, existe uma série de
fatores, no atual modelo societário, que limitam o ethos em sua formulação clássica. Entre esses
fatores é possível citar as novas formas e construções do texto, ligadas as dias e a publicidade,
o poder, cada vez maior, da oralidade, em uma sociedade marcada por espaços sociais
fraturados, por uma cultura da exposição individual via mídias.
Nesse ínterim, o ethos deve ser percebido como a imagem que emerge de um complexo
conjunto formado pela formação das palavras, pelo planejamento e exposição textual, pela
recepção do texto junto ao público e muito mais. Assim,
O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode
ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador
antes mesmo que ele fale. Parece necessário, então, estabelecer uma distinção
entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo. [...]. Uma outra série de
problemas advém do fato de que, na elaboração do ethos, interagem
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fenômenos de ordens muito diversas: os índices sobre os quais se apoia o
interprete vão desde a escolha do registro da língua e das palavras até o
planejamento textual, passando pelo ritmo e a modalidade. O ethos se elabora,
assim, por meio de uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade do
interprete, que tira suas informações do material linguístico e do ambiente
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 15-16).
Assim, o autor Professor da Sorbonne tenciona construir um discurso positivo, bem
elaborado que passa para o auditório uma imagem positiva proporcionada por esse discurso.
Essa imagem ou a imagem do discurso e não o discurso em si é o que constituiu o ethos.
Nesse caso, o sujeito falante, dentro da relação entre o texto e a oralidade, necessita de imagem
do discurso para poder construir algum tipo de interação (confiança ou desconfiança, aprovação
ou desaprovação, etc) com o texto e, principalmente, com o conteúdo informacional que emana
do texto. Sobre essa questão, Maingueneau ressalta:
A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão por meio do modo
como se constrói o discurso, em dar de si uma imagem capaz de convencer o
auditório ao ganhar sua confiança. O destinatário deve assim atribuir certas
propriedades à instância apresentada [...]. (MAINGUENEAU, (2016, p.
267).
O ethos, por conseguinte, é o responsável pela construção de uma figura, de um
personagem relevante dentro do texto, no caso em pauta, a figura de Frei Damião na literatura
de cordel. A partir dessa imagem, dessa representação imagética-textual, é que a figura ganha
autonomia dentro do imaginário social, fazendo com que seja (re) conhecida por determinadas
características e/ou ações. Para Maingueneau:
[...] o discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar muito
grosseiramente de uma “voz”. Esta era, aliás, uma dimensão bem conhecida
da retórica antiga que entendia por ethé as propriedades que os oradores se
conferiam implicitamente, através de sua maneira de dizer: não o que diziam
a propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se
expressarem. [...]. A eficácia destes “ethé” se origina no fato de que eles
atravessam, carregam o conjunto da enunciação sem jamais explicitarem sua
função. (MAINGUENEAU, 1997, p. 45)
Isto posto, o ethos, então recobre não apenas a dimensão verbal, mas também um
conjunto de características psíquicas e físicas que se associam a um fiador, o qual se revela por
meio de um tom, atestando o que diz. Esse fiador recebe um caráter e uma corporalidade que
variarão conforme a constituição dos textos, a cena de fala criada. Enquanto “o caráter
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corresponde a um feixe de traços psicológicos”, a corporalidade está ligada a uma “compleição
física e a uma forma de vestir” (MAIGUENEAU, 2006,p. 62)
É interessante notar que a apresentação de si no discurso, confere autoridade ao locutor.
Isso permite, em diferentes graus, a emergência de afinidades e proximidades com
determinados indivíduos assim como, por outro, a emergência de distinções e distanciamentos
de outros. Essa compreensão da imagem que se constrói no discurso, tanto individual como
coletiva, implica em uma reflexão sobre ethos prévio e ethos discursivo. O primeiro pressupõe
conhecimentos sobre o modo de ser do locutor. Enquanto que o segundo, exige a observação
do discurso por meio do qual o locutor projeta uma imagem de si e negocia sua identidade.
Com esse pensamento, ressaltamos que o papel do ethos se de forma não impositiva,
ou seja, é algo originado pelo outro a partir do outro, a respeito do que ele constrói sobre
determinado sujeito.
É importante ressaltar que a imagem, a qual a literatura de cordel ajuda a construir de
Frei Damião é fruto dos seus discursos (sermões e modo de vida). Pois, o discurso, que circula
socialmente, acerca do Capuchinho, oscila entre o missionário piedoso, feitor de milagres, o
homem caridoso e a imagem de um religioso radical com um discurso de um cristianismo
primitivo, rural e bucólico. Essa imagem, esse ethos é constituído, em grande medida, pela
literatura de cordel, a partir das pregações e do modo de vida do Frei Italiano.
Vale salientar que o ethos não é uma representação pronta e acabada. Ele pode ser
articulado, inclusive, pela relação do texto cordelista com a oralidade, a partir dos elementos
apresentados no texto: vestimentas, argumentos, posturas, gestos e palavras. Tudo isso, em
conjunto, é responsável pela construção de uma imagem sociocultural, na tentativa de auxiliar
o interlocutor na construção de uma representação, geralmente positiva, de algum elemento
e/ou figura sócio histórica, presente no texto. Em consonância com o exposto, Maingueneau
elucida:
Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de
uma forma dinâmica, construída pelo destinatário por meio do próprio
movimento da fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano, mas de
forma lateral. Ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a
afetividade do destinatário. (MAIGUENEAU, 2008, p. 57).
Assim, a construção do ethos, como foi dito, é um conjunto de elementos que o
sujeito, presente no texto, possui, de forma que o receptor é tocado de todas as formas pelo
locutor, podendo fazer suas próprias atribuições sobre o outro e construir o que compreende
como a representação do outro, ou seja, o ethos presente no texto. Por essas razões, é que o
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sujeito faz uma junção de corpo e discurso sobre o outro, construindo relações dentro de suas
especificidades sociais e pessoais e permitindo essa elaboração do ethos de cada indivíduo. Para
Maingueneau:
A noção de ethos permite ainda refletir sobre o processo mais geral de adesão
dos sujeitos ao ponto de vista defendido por um discurso [...] permite articular
corpo e discurso: a instância subjetiva que se manifesta através do discurso
não se deixa perceber neste apenas como um estatuto, mas sim como uma voz
associada à representação de um “corpo enunciante” historicamente
especificado. (MAIGUENEAU, 2016, p. 271).
Como podemos observar, a adesão do sujeito a um discurso não é automática e nem pré-
programada. Em grande medida, essa adesão depende dos elementos internos que compõem o
texto, de como o enunciado é construído e organizado e como essa organização, interna ao
sistema frasal, poderá causar algum grau de impacto no sujeito. Um sujeito que, em muitos
sentidos, está relacionado a oralidade, aos sistemas de fala, signos e crenças. É a relação entre
o texto, carregado com seus enunciados, o sistema de fala e signos e o sujeito que é possível
estabelecer um ethos entre o texto e o sujeito. Na negociação da construção da imagem de si, o
locutor (o cordelista) se engaja em um diálogo com o que os outros dizem e pensam sobre
aquela pessoa que se fala.
LITERATURA DE CORDEL
A literatura de cordel, no 19 de setembro de 2018, foi reconhecida pelo Conselho
Consultivo, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como Patrimônio
Cultural Brasileiro (IPHAN, 2018). Esse tipo de literatura é uma das expressões literárias que
melhor representam o cotidiano, a história e o povo brasileiro.
Desse modo, a literatura de cordel é um gênero literário que chegou ao Brasil no período
da colonização, entre os séculos XVII e XVIII, trazida pelos portugueses. Muitas vezes, serviu
como forma de manifesto literário da cultura popular, especificamente, no nordeste brasileiro.
Esse gênero desenvolveu peculiaridades próprias no nordeste brasileiro e, atualmente, vive um
processo de expansão pelo Brasil e por outros países (EUA, México, França, Itália, etc) como
pode ser visto em Abreu (1999).
Conhecidos popularmente como cordéis, esses folhetos populares em forma de poema
são livros pequenos que geralmente contam, em forma poética, uma história. Muitas vezes, são
livros ilustrados com xilogravuras estampadas, principalmente, em suas capas, fazendo uso de
temas e acontecimentos populares, através da linguagem impressa, composta de rimas poéticas
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metrificadas, cuja origem mais remota, são os trovadores medievais. A origem do nome cordel
se pelo fato de, no final do século XIX e início do XX, os pequenos livros contento os poemas
eram pendurados, nas feiras livres das cidades do Nordeste brasileiro, em cordas e/ou barbantes
para melhor exposição, e vendidos em locais de comércios. Sobre essa questão ressaltamos:
[...] a Literatura de Cordel assumia função informativa, fazendo o papel de
uma imprensa por vezes inacessível às camadas populares. Assim, “homens
dispersos no espaço e ‘fechados’ nas fazendas encontram, ao comprar os
folhetos, a oportunidade de saber das últimas novidades ou de trocar uma
moeda por um pouco de sonho” (POTIER, 2012, p. 19).
Como vemos, no final do século XIX e início do XX, por meio da literatura de cordel
as pessoas que viviam na zona rural, muitas vezes, isoladas e não tinham o hábito de frequentar
a cidade, buscavam informações através dessa leitura. Além disso, esse gênero literário, durante
muito tempo, em meio a imensidão e até mesmo da solidão da zona rural, funcionou como
elemento de distração para o cidadão. Assim, o cordel funcionava como uma espécie de grito
popular que unia à poesia, os clássicos da literatura universal e a experiência sociocultural,
principalmente, a experiência do morador da zona rural do nordeste brasileiro (COUTINHO,
1978).
Nesse sentido, a literatura de cordel continua possibilitando que uma parcela
considerável da população, principalmente, a população da zona rural, grupos humanos que
vivem semi-isolados no interior do Brasil, possam, ao mesmo tempo, expressar e ter acesso ao
patrimônio cultural, aos signos e significados que ajudam a consolidar um discurso de
identificação sociocultural.
Esse tipo de literatura narra para o povo o que ocorre no dia-a-dia. Sua intensa força de
persuasão o tornou um grande veículo disseminador de ideias. Colocar o poeta popular como
cronista da contemporaneidade aproxima a poesia das pessoas, fazendo com que a difícil
realidade seja decodificada de uma forma diferente, ainda dura, ainda real, mas que leva as
pessoas a refletirem de uma forma mais sutil.
Dentro desse discurso emerge figuras folclóricas, do imaginário social e portadoras de
uma mensagem religiosa, destacam-se: o Padre Cícero Romão, Antônio Conselheiro e o Frei
Damião. O discurso do sujeito nordestino, muitas vezes, entrecortado por uma mensagem
religiosa, é apresentado por Silva (1997, p. 3-4) da seguinte forma:
Entre os deuses que reinaram
no legendário sertão
estão em primeiro plano
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o padre Cícero Romão
o legendário Conselheiro
e o nosso frei Damião.
São grandes missionários
que a Deus obedientes
vêm consolida a fé
nos corações mais descrentes
deixando um rastro de luz
clareando nossas mentes.
Através dos versos, Silva (1997), demostra a figura do Frei Damião, percebida
pelo povo nordestino, como um rastro de luz. Do ponto de vista do ethos, uma imagem positiva
do religioso católico, um missionário que deve iluminar os corações dos seres humanos. É
preciso esclarecer que a literatura de cordel não segue uma religião ou uma doutrina política e
filosófica, contudo, devido as suas origens ibéricas, à influência cristã, à forte presença da
cultura popular e por estar tão perto do homem simples e comum, existe um forte conteúdo
espiritual e religioso dentro dos textos que a compõem.
Nesse pensamento, é possível encontrar na literatura de cordel elementos e princípios
religiosos ligados a várias religiões, do espiritismo ao budismo. No entanto, o conteúdo
religioso mais presente nesta expressão literária é o cristianismo. Não se pode afirmar que o
cordel é cristão, mas seu conteúdo poético-cultural está carregado de elementos da religiosidade
popular e da cultura cristã. Por esse motivo, não é nenhum espanto que das três figuras mais
citadas, ao longo da história da literatura de cordel, duas sejam sacerdotes católicos, ou seja, o
Padre Cícero Romão e o Frei Damião.
Reforçamos o pensamento ainda de que o presente estudo não é uma análise exaustiva
da presença de Frei Damião dentro da literatura de cordel, mas trata-se de uma análise
demonstrativa de como é efetivado o ethos desse sacerdote católico, enquanto personagem, na
literatura de cordel.
A FIGURA DE FREI DAMIÃO NA LITERATURA DE CORDEL
Para iniciarmos nossa análise, utilizaremos algumas estrofes do cordel: Os Milagres de
Frei Damião, de José Soares, composto por vinte e duas estrofes com versos em sextilha. Nas
estrofes II e III, o poeta nos leva a perceber o ethos discursivo da figura do Frei Damião:
Com seu poder sacrossanto
dado pela providência
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de um poder infinito
da divina Oniciencia
que a santa majestade
deu-lhe o poder de bondade
do nosso Deus de clemencia
Assim como jesus Cristo
transformou água no vinho
frei Damião também faz
como fez o meu padrinho
muitas curas milagrosas
porque a mão poderosa
deu poder ao capuchinho
(SOARES, 1981, p. 11)
Nessas estrofes Frei Damião é apresentado como um enviado de Deus que recebeu
poderes capazes de fazer curas e milagres. Essa passagem está presente no primeiro e no terceiro
versos da segunda estrofe. nos dois últimos versos da segunda estrofe também é possível
vislumbrar que ele recebeu poderes divinos, passagem do texto em que o poeta parece reforçar
a ideia de confiança no que está expressando pelo seu discurso. Esses fatores contribuem para
que ele seja visto como um religioso capaz de operar milagres e de realizar feitos sobrenaturais.
Pensando na construção do ethos, pelo discurso construído no cordel, recorremos a
Maingueneau para esclarecer:
[...] o ethos implica uma maneira de se movimentar no espaço social, uma
disciplina tácita do corpo apreendida mediante um comportamento global. O
destinatário o identifica com base num conjunto difuso de representações
sociais avaliadas de modo positivo ou negativo, de estereótipos que a
enunciação contribui para confirmar ou modificar. (MAIGUENEAU, 2016,
p. 272).
Assim, o ethos, se retrata através de representações sociais que podem ou não ser
positivas, dependendo daquilo que esteja sendo representado. No caso do cordel em pauta, a
figura de Frei Damião, ganha, diante do leitor, uma imagem positiva, impregnada da cultura
religiosa, dos problemas geofísicos (secas, escassez de água, etc) e sociais que habitam o mundo
do leitor. Na verdade, o discurso enfatiza um sujeito enviado de Deus, capaz de fazer milagres,
como se quisesse passar uma mensagem, uma palavra, uma construção enunciativa capaz de
dar esperança ao sofrido povo do Nordeste e de outras regiões do país. Das estrofes IV até a IX
Soares explicita um dos miraculosos atribuídos a figura do Frei Damiao. Ele apresenta esses
feitos da seguinte forma:
Na cidade de Bom Conselho
curou uma professora
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da irmandade católica
Maria Auxiliadora
que tinha uma santa madre
autorizada do padre
como sua diretora
Essa pobre professora
sofria de um mal incurável
desenganada dos médicos
em condição deplorável
da família abandonada
pelo povo desprezada
num estado detestável
No dia 7 do mês
o frade Frei Damião
apareceu na cidade
fazendo santa missão
e a professora em pranto
pediu ao padre santo
lhe ouvir uma confissão
Frei Damião aceitou
o pedido da cliente
notando que sua filha
estava muito doente
a professora coitada
a o padre ajoelhada
contou tudo em continente
O padre lhe perguntou
se acreditava na cruz
ela disse a cruz pra mim
é como o símbolo da luz
erigida na capela
frei Damião disse a ela
pois tenha fé em Jesus
Ela contou os pecados
foi pra casa descansada
passou a noite dormindo
não sentiu dores nem nada
dez horas ela deitou-se
pela manhã levantou-se
radicalmente curada.
(SOARES, 1981, p. 2-3)
Soares (1981) apresenta um dos milagres atribuídos ao Frei Damião; a cura de uma
professora que tinha uma doença incurável. No decorrer das estrofes são colocadas situações,
do ponto de vista poético e imagético, sobre a aproximação da professora com o frade. Esse
detalhamento exposto no cordel possibilita o leitor a criar uma imagem de como se deu esse
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fato extraordinário. Temos aí, uma cenografia, parte da cena é o confessionário que indica o
arrependimento daquela, diante do frei que lhe ouvira a confissão, arrepende-se e implora o
seu perdão e cura. A outra parte, é sua casa que indicando assim o regresso e ao locus que
talvez lhe angustiava e a cura após o sono. Não após o descanso, pois a mesma chegou em
casa em estado de cura e paz. Essa cenografia valida a fama do Frei e a da mulher que
sofria de uma doença.
Partindo dessa linha de pensamento é possível citar Maingueneau (2008, p. 65):
De fato, a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma
personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte
pregnante e ao qual ele acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da
leitura é um estereótipo cultural que subsume determinado número de
situações estereotípicas associadas a comportamentos [...].
(MAIGUENEAU, 2008, p. 65).
Nesse sentido, Maingueneau lembra que o leitor é encaminhado pela dinâmica interna
do texto, a se colocar no papel de um personagem e, desse modo, consiga imaginar-se
vivenciando os acontecimentos narrados nele. Em grande medida, a figura do Frei Damião é
vista, tanto no universo poético do cordel como em setores da cultura popular brasileira, como
um religioso praticante de milagres, devido ao processo de incorporação. Isso acontece pela
forma como texto poético é organizado, pois a força resultante da relação entre estrutura
poética-textual, a relação entre texto e oralidade e o mundo social fazem com que o leitor e/ou
o ouvinte do texto, mergulhe no imaginário produzido pelo texto.
É preciso lembrar que grande parte do público da literatura de cordel apenas ouve/escuta
a declamação dos poemas Com isso, independente dos fatos reais que circundam a vida do
sacerdote Frei Damião, o personagem, a figura literária Frei Damião passa a ter uma imagem
de santo milagreiro, de missionário que faz curas e fatos extraordinários, construída pelo
discurso no cordel.
Na sequência, Soares nas estrofes XV, XVI e XX ressalta a santidade atribuída a Frei
Damião pelos fiéis cristãos:
Toda vida comparei
frei Damião de Bozano
com Padre Cícero Romão
e o Papa do Vaticano
segundo o que tenho visto
frei Damião é ministro
do nosso Deus soberano
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Frei Damião é velhinho
chega já anda corcundo
mais pode fazer milagre
em menos de um segundo
pois é um santo ministro
imitando Jesus Cristo
quando andava pelo mundo
[...]
Se frei Damião morrer
Entra direto no ceu
Para mim ele é um santo
Jamais poderá ser réu
Frei Damião e simbólico
Eu como sou apostólico
A ele tiro o chapéu.
(SOARES, 1981, p. 5-7).
Essa cenografia permite que a medida que os valores do Frei em comparação a outras
figuras, uma precisão temporal que dá ao enunciador uma condição de notoriedade ao Frei
Capuchinho e de sua vida miraculosa. Podemos dizer que um simbolismo religioso na
própria figura de seu agir, que é percebido pelo cordelista e pelo povo.
O fragmento do Cordel possibilita a construção de um ethos, no qual Frei Damião tem
a imagem, a imagética de um homem santo, com uma vida de piedade e de dedicação aos fiéis.
Uma das técnicas utilizadas nessas estrofes é colocar a imagem de Frei Damião junto, de forma
correspondente, à outra figura relevante e mística da literatura de cordel; o Padre Cícero Romão.
Outra técnica, do ponto de vista da construção de um ethos, é comparar a figura do Frei Damião
com o papa, ou seja, o líder espiritual da Igreja Católica. Assim, atribui-se ao Frei Damião uma
autoridade espiritual, mística, ética e, até mesmo humanística universal.
Com isso, Frei Damião não é apenas um missionário que fez pregações no nordeste do
Brasil, um imitador de Jesus Cristo, mas um portador de um discurso universal, que parte do
nordeste brasileiro. O destinatário do seu discurso não está circunscrito a essa região do país.
Trata-se de um discurso voltado para o mundo, para as fronteiras fora do Brasil. Na XX estrofe
Soares (1981) fortalece esse ethos de santidade, de discurso universal atribuído a figura do Frei
Damião, pois devido aos serviços ético-religiosos prestados a humanidade ele já teria um lugar
assegurado no paraíso bíblico.
No sentido de reforçar esse raciocínio, recorremos a Maingueneau, quando afirma:
assim uma circularidade constitutiva entre a imagem que ele de sua
própria instauração e a validação retrospectiva de certa configuração da
comunicação, da repartição de sua autoridade, do exercício do poder que ele
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cauciona, denuncia ou promove por seu gesto instaurador.
(MAIGUENEAU, 2008, p. 54).
A partir desse raciocínio, compreendemos que nas estrofes apresentadas, existe uma
relação, mesmo que precária, entre o sujeito histórico Frei Damião de fato ele existiu, era um
sacerdote, pregava missões cristãs nas cidades do interior do nordeste brasileiro, e a
representação sócio religiosa e poético-imaginária construída pelo texto. O texto apresenta um
personagem, uma figura poética identificada com o nome de Frei Damião, que possui algumas
características históricas desse sujeito. Contudo, além dessas características, apresenta uma
construção imagética que coloca essa figura literária junto dos grandes nomes da cristandade,
dos grandes vultos da história da humanidade, que atribui a essa figura um ethos de um discurso
universal e humanístico.
Já no cordel, cujo título é Frei Damião: o último santo do sertão, Silva (1997) também
faz referência a figura do Frei Damião. Para melhor esclarecimento deve-se citar, por exemplo,
as estrofes VII e XIV do poema:
Frei Damião de Bozzano
(perdão pelo desatino)
São Damião Brasileiro
São Damião Nordestino
a quem milhões de devotos
entregarão seu destino.
[...]
Seguem os missionários
seus luminosos destinos
reverenciados como
santificados, divinos
na alma das multidões,
nos corações nordestinos.
(SILVA, 1997, p. 2-4).
Nas estrofes apresentadas, o poeta manejar as palavras com acerto, relacionando o nome
do sacerdote católico, ou seja, Damião de Bozzano, com o creme masculino, geralmente
utilizado para se barbear, Bozzano. Com isso, cria-se um trocadilho entre o “Bozzano” do Frei
Damião e o “Bozzano” do creme de barbear. Por isso, o poeta pede “perdão pelo desatino” dos
versos poéticos. Além disso, o poeta compara a figura do Frei Damião, relacionada a um famoso
missionário que fez pregações no nordeste do Brasil, com São Damião um monge que viveu na
Síria e que é um dos grandes pregadores e santos do monasticismo cristão.
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Nesse sentido, o poema constrói uma indicação, uma espécie de proposta indireta, para
que o Brasil, país que até o final do século XX não tinha um santo proclamado, de forma oficial,
pela Igreja, aclamasse o Frei Damião como o santo brasileiro, como uma espécie de São Damião
do Brasil. É preciso observar que a insistência de Silva (1997) em apresentar a figura do Frei
Damião como um santo, muito provavelmente a versão brasileira de São Damião, é uma técnica
de construção do ethos muito presente na literatura de cordel. Em muitos aspectos, o cordel faz
uma identificação entre o sofrimento presente na história da vida dos santos e o sofrimento
vivido pelo cidadão. Sobre a relação entre o cordel, a vida dos santos e as angústias
socioculturais vividas pelos cidadãos, especialmente os cidadãos do nordeste do Brasil,
Cavignac (2006) ressalta:
A humanidade e o sofrimento dos santos aparecem assim como elementos
fundadores e organizadores do sistema de representação do mundo divino. [...]
os santos chegam até a compreender e resolver os problemas dos homens, haja
vista que conhecem o sofrimento. [...] eles se tornam interlocutores potenciais.
Isso explica porque os sertanejos insistem mais no poder dos santos [...] poder
adquirido em consequência de um sofrimento físico ou moral (CAVIGNAC,
2006, p. 207).
De acordo com Cavignac (2006) um sujeito não se santifica à toa, para que isso ocorra,
é necessário que haja motivos maiores, fatores contribuintes, como os sofrimentos físicos, os
problemas econômicos e as angústias socioculturais. Esse tipo de construção discursiva-textual
encontra-se no cordel de Silva (1997), pois seu discurso indica uma identificação entre o
personagem Frei Damião, a vida dos santos e os diversos níveis sofrimento enfrentados pelo
cidadão.
Desse modo, na construção desse ethos, existe a articulação de certas características e,
por essa razão, é importante que a relação entre o texto/orador possa ter uma noção de
conhecimento sobre o seu público (leitor e/ou comunidade da oralidade), para que possa haver
algum grau de adequação às diferentes circunstâncias que lhe serão proporcionadas, acarretando
em uma identidade interligada ao público. Sobre essa questão, Maingueneau esclarece:
O ethos constitui, assim, um articulador de grande polivalência [...] a
qualidade do ethos remete a um fiador que, através desse ethos, proporciona a
si mesmo uma identidade em correlação direta com o mundo que lhe cabe
fazer surgir [...] o fiador que sustenta a enunciação deve a legitimar por meio
de seu próprio enunciado seu modo de dizer. (MAIGUENEAU, 2016, p.
278).
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Nessa perspectiva, o ethos deve, de um lado, está relacionado, de alguma forma, ao
público leitor/oralidade. Um ethos totalmente desvinculado com esse público não terá
condições de construir pontes de identificação, entendimento e interpretação. Se a literatura de
cordel é muito viva e presente no Brasil, principalmente, no nordeste brasileiro, é, em grande
medida, devido ao caráter de ethos de identificação entre o público e o texto.
Do outro lado, o ethos deve ser capaz de edificar uma articulação entre o texto e o mundo
vivido, entre a estrutura poética-imaginária e a vida real. Um exemplo de como o ethos deve
estabelecer essas duas dimensões consta de Silva (1997). De um lado, Silva (1997) constrói
uma estrutura poética ligada diretamente ao público leitor/oralidade, principalmente, ao público
consumidor de poesia popular no interior do Brasil e, do outro lado, ele consegue articular a
estrutura textual-poética com a realidade social, religiosa e cultural de amplos setores do interior
brasileiro.
Seguindo nossa análise, passemos a outro cordel: Frei Damião: o missionário do
Nordeste, de Cavalcante (1976). As estrofes V e IX apresentam a figura do Frei Damião da
seguinte forma:
Trata-se de Frei Damião
De porte simples, sereno
Com uma batina velha,
De estrutura: pequeno,
Pelas cidades pregando
Ao povo anunciando
Como Jesus Nazareno.
[...]
Na cidade que ele chega
É formada a romaria
Por milhares de fiéis
Que o próprio povo anuncia.
Vale a pena a pregação
Do frade Frei Damião
Que fala sem hipocrisia.
(CAVALCANTE, 1976, p. 2-3).
Como é possível perceber, as estrofes ilustram o ethos da figura do Frei Damião como
um pregador humilde, que fala a verdade, distante dos interesses egoístas existentes na vida
cotidiana. Nesse fragmento existe um ethos de identificação, quase de semelhança. De um lado,
o nordeste brasileiro é aproximado, do ponto de vista imagético, com o deserto da antiga
Palestina, região onde viveu e pregou Jesus Cristo. Assim como a Palestina, o nordeste
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brasileiro é uma região (semi) desértica, pobre, com um povo explorado e que espera a redenção
por meio da vinda do messias.
Do outro lado, existe a identificação com o carisma de Jesus Cristo, um líder messiânico
palestino, que atraia multidões para suas pregações. Nesse contexto, a figura do Frei Damião é
apresentada como um líder religioso cristão que, assim como Jesus Cristo, vive em um (semi)
deserto, uma região pobre, explorada e que suas pregações atraem multidões de curiosos e de
pessoas que desejam, de forma sincera, a redenção dos problemas individuais e sociais.
Nesse sentido, a identificação de um ethos discursivo, entre a figura do Frei Damião e a
vida austera do deserto palestino, entre Frei Damião e a disciplina religiosa dos profetas bíblicos
é apresentada por Costa (1998) da seguinte forma:
Para o povo, Frei Damião foi milagroso, e para muitos outros foi um
milagreiro. Quando estava em plena atividade missionária pelas cidades
nordestinas, ia dormir tarde da noite e deitava-se no chão, acordando-se às
quatro horas da manhã para confessar o povo. Alimentava-se pouco [...] um
símbolo do seu próprio sofrimento. (COSTA, 1998, p. 25).
A partir de Costa (1998) deve-se perceber que, de um lado, existe um ethos que articula
o personagem Frei Damião, presente na literatura de cordel, e a realidade do nordeste brasileiro.
Uma realidade, muitas vezes, marcada por secas, problemas sociais e crises econômicas. Do
outro lado, assim como na antiga Palestina, a esperança para superar esse quadro de problemas
e conflitos sociais não vem de um discurso político, do direito ou de alguma instância da
racionalidade. Pelo contrário, uma possível solução é vislumbrada no discurso religioso,
místico, poético e imagético. O discurso proferido pelo cordel nos leva a entender que a
esperança não vem da razão ou da política, mas sim da poesia e da vida religiosa.
Sobre algumas características do ethos, que podem ser aplicadas a figura do Frei
Damião, presente na literatura de cordel, Maingueneau ressalta:
- o ethos é uma noção discursiva; é construído por meio do discurso, em vez
de ser uma “imagem” do locutor exterior á fala;
- o ethos está intrinsecamente ligado a um processo interativo de influência
sobre o outro;
- o ethos é uma noção intrinsecamente híbrida (sociodiscursiva), um
comportamento socialmente avaliado que não pode ser apreendido fora de
uma situação de comunicação precisa, ela mesma integrada a uma dada
conjuntura sócio histórica. (MAIGUENEAU, 2016, p. 269).
As características, acima, apresentadas por Maingueneau (2016) podem ser encontradas
no cordel de Cavalcante (1976) e também de Silva (1997) e Soares (1981) sobre a figura de
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Frei Damião. De um lado, trata-se de uma construção literária ligada a uma situação sócio
histórica, ou seja, está vinculada a uma região geofísica (o nordeste do Brasil), a um contexto
de problemas e conflitos socioculturais. Do outro lado, está ligada ao que Maingueneau
classificou de noção hibrida do discurso, isto é, um discurso que é constituído e, ao mesmo
tempo, oscila entre diferentes polos do discurso, como, por exemplo, o discurso literário, o
discurso religioso, o discurso de crítica social e o discurso da esperança ética. Essa complexa
combinação ajuda a construir o ethos de identificação entre o texto, o personagem nesse caso
a figura do Frei Damião e o conjunto formado pelo leitor/comunidade de oralidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De forma geral, os cordéis utilizam de uma variedade de artifícios de linguagem para
construir um ethos de identificação entre o texto e o conjunto formado pelo leitor/comunidade
de oralidade. Nesse contexto, eles contribuem para que o sujeito, enquanto ser social, possa
atribuir diferentes visões sobre o outro e sobre a realidade sócio histórica em que está envolvido.
O ethos de identificação dentro da literatura de cordel visa, de um lado, manter não
exatamente reproduzir a estrutura poética-textual que foi estabelecida pelo texto, mas do outro
lado, visa conduzir o conjunto formado pelo leitor/comunidade de oralidade a ir além da pura
métrica poética e, com isso, mergulhar esse conjunto na realidade sócio histórica. Uma
realidade que, muitas vezes, está carregada de problemas e conflitos sociais.
Nesse sentido, a teoria desenvolvia por Maingueneau ajudou a refletir e a (re) posicionar
a figura do Frei Damião presente na literatura de cordel. De um lado, essa figura possui um
ethos de identificação entre o deserto da Palestina e o semiárido brasileiro, entre o carisma do
pregador do nordeste do Brasil e a figura de Jesus Cristo no deserto da antiga Palestina. Do
outro lado, existe o ethos de articulação entre a figura do Frei Damião e a geografia física do
nordeste brasileiro, entre os problemas sociais e as esperanças do povo nordestino. A figura do
frei Damião termina sendo um sofisticado articulador poético-linguístico, textual-histórico para
os dramas e esperanças de muitas populações que vivem na zona rural do Nordeste e de outras
regiões do país.
Por fim, lembramos que, num tempo em que a literatura de cordel foi reconhecida, como
Patrimônio Cultural Brasileiro, um estudo sobre o ethos da figura do Frei Damião presente na
literatura cordelística reforça o caráter de identificação entre esse gênero literário e o povo
brasileiro, bem como a necessidade de refletir sobre os estudos da linguagem que envolvam a
construção do discurso. Tanto o cordel como a figura do Frei Damião são faces da poesia
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popular e de um ethos de identificação entre a literatura e a realidade nacional, entre o texto
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[Recebido: 26 jun. 2019 Aceito: 26 dez. 2019]