BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 108
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
VAQUEIROS: ENTRE LETRA, VOZ, RELAÇÕES DE GÊNERO
Fabíula Martins Ramalho (UnB)
André Luís Gomes(UnB)
RESUMO: Vaqueiros é uma tragédia contemporânea escrita em 1999 pelo dramaturgo, poeta, artista
plástico, professor e pesquisador cearense Oswald Barroso e apresenta as relações conflituosas
vivenciadas por uma família diante das mudanças dos arquétipos estabelecidos para os papéis do
homem e da mulher na sociedade patriarcal sertaneja. Para apresentar o conflito familiar, focado na
relação de gênero, a peça utiliza narrativas oriundas da tradição oral e personagens do reisado de
caretas, folguedo popular nordestino, dando ao texto teatral uma linguagem híbrida, metateatral
baseada na cultura popular. Desse modo, abordaremos questões que envolvem oralidade, escrita,
tradição e teatro para realizar uma análise, ainda que sucinta, de como a tradição oral e popular
nordestina é incorporada à peça, criada a partir das formas clássicas da tragédia grega, para representar
as vozes dissonantes das mudanças culturais e sociais que também ocorrem no sertão.
Palavras-chave: Teatro. Oralidade. Cultura popular. Relação de gênero.
ABSTRACT: Vaqueiros is a modern tragedy written in 1999 by the playwright, poet, artist, professor
and researcher Oswald Barroso, and presents the conflictual relations experienced by a family in the
face of the changes of the archetypes established for the roles of man and woman in society patriarchal
country. In order to present the family conflict, focused on the relationship of gender, the play uses
narratives from the oral tradition and characters from the reisado de caretas, folguedo popular
northeastern, giving the theatrical text a hybrid language based on popular culture. In this way, we will
approach issues involving orality, writing, tradition and theater to carry out a succinct analysis of how
the oral and popular Northeastern tradition is incorporated into the play Vaqueiros, created from the
classic forms of Greek tragedy, to represent the dissonant voices of cultural and social changes that
also occur in the hinterland.
Keywords: Theater. Orality. Popular culture. Gender relationship.
1. Introdução: conhecendo o dramaturgo Oswald Barroso
Na história da formação do teatro brasileiro, a dramaturgia nordestina é uma
importante colaboradora para ampliar o cânone e as ideias teatrais no Brasil. No entanto,
apesar da produção ativa de dramaturgos, de atores, de encenadores e de grupos, nos diversos
estados , foi somente com o processo de nacionalização e de modernização do teatro brasileiro
que a produção teatral nordestina ganhou visibilidade nacional com a encenação da peça Auto
da Compadecida, em 1957, de Ariano Suassuna, no Rio de Janeiro.
Assim, “com um choque de brasilidade” (MAGALDI, 2002, p. 237), abriu-se
caminhos para as diversas vertentes do teatro nordestino. Nessa perspectiva, encontra-se o
teatro do dramaturgo, poeta, artista plástico, professor e pesquisador Oswald Barroso.
Nascido em Fortaleza, no dia 23 de dezembro de 1947, Barroso sempre esteve comprometido
com a pesquisa sobre a cultura popular, suas fontes e desdobramentos, atuando ativamente no
cenário artístico-cultural cearense. Seu pai, Antônio Girão Barroso era poeta, sua mãe era
professora, mas dedicou-se totalmente a educação dos filhos. Recebeu uma boa formação
educacional. Cresceu ouvindo histórias, indo ao teatro e vendo as manifestações populares
nordestinas, como o cortejo e o reisado. Aprendeu assim, desde a infância, a amar o seu povo
e suas manifestações culturais. Estreou no teatro, como dramaturgo, na década de 1970.
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 109
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Desde a sua primeira peça, “O Reino da Iluminura ou A Maldição da Besta-Fera”,
encenada pelo Grupo de Teatro Amador (GRITA), Barroso deixa claro a fonte do seu teatro: a
tradição popular nordestina, com suas narrativas, poetas, cantadores, espetáculos, danças,
folguedos, e o engajamento político, social e cultural.
A partir dessa nascente, o dramaturgo faz escolhas estéticas e simbólicas que trazem
reflexões para o texto teatral e para a cena, dando voz a tantos silenciados pelas circunstâncias
culturais, sociais e históricas:
Ao investir num teatro literário, mais do texto do que da experimentação
cênica, repleto de matéria popular, fortemente compromissado com as fontes
tradicionais, Oswald segue na mesma direção já apontada pelos pioneiros da
dramaturgia nordestina, fazendo-o é claro, à sua maneira, trilhando a vereda
que ele mesmo abriu a golpes de facão, e que, ao fim e ao cabo, é somente
sua. (NEWTON JÚNIOR, 2011, P. 14)
Tendo em vista esse contexto, o presente artigo pretende analisar como a peça
Vaqueiros, elaborada a partir das formas clássicas da tragédia grega, ao dialogar com os
personagens, as histórias, as imagens, a palavra e a voz provenientes da tradição oral e
popular do Nordeste, cria uma linguagem híbrida que representa vozes conflitantes em frente
as mudanças nas relações de gênero na estrutura social sertaneja. No entanto, antes da análise,
abordaremos brevemente as relações entre tradição, oralidade, escrita e teatro.
2. Vaqueiros: entre letra, voz e relações de gênero
Na cultura popular nordestina, observa-se uma forte tradição oral transmitida ao longo
do tempo. Todavia, a oralidade ultrapassa o sentido apenas linguístico de comunicação por
meio da fala, como diz o crítico literário: “A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão
do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro:
seja um gesto mudo, um olhar” (1997, p. 203).
Desse modo, usaremos aqui, com base em Zumthor, o termo vocalidade ao invés de
oralidade, pois segundo ele a “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso” (1993, p.
21). Portanto, a voz possui um lugar simbólico, uma relação eu-outro, uma linguagem, um
enunciador/ouvinte, um corpo, uma prática histórica e a cultural, permitindo que ela transite
entre disciplinas e encontre-se na base das mais diversas culturas e em diferentes suportes.
Nessa perspectiva, é possível integrar a voz ao escrito. Como afirma Zumthor: “Em
vez de ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma convergência entre os modos de
comunicação assim confrontados(1993, p. 114). Assim, a passagem do vocal para o escrito não
significa perda ou ausência da voz viva”, mas uma relação de troca que cria uma memória viva”,
portadora de uma tradição que se faz presente, se atualiza no tempo e no ato de comunicar-se.
É com a tradição que o teatro dialoga. Desde a Grécia antiga, a tradição oral está
presente no texto dramático e na encenação. A etimologia da palavra tragédia, por exemplo,
remete à ideia da voz, como canto, pois refere-se ao “coro de bodes” em honra a Baco”
(MOISÉS, 2004, p. 448), portanto, “um grupo de cantores vestido de bode, à maneira de
sátiros” (2004, p. 448).
O teatro, ao ligar-se com os ecos das tradições orais, torna a “palavra viva” seja por
meio da escritura teatral ou da performance. Assim, as narrativas orais não são somente
relatos de histórias passadas, lendas, mitos, folclore, mas são uma forma de diálogo com o
presente, um modo de renovar a visão de um “eu”, de uma coletividade, e da própria voz,
possibilitando o ressoar de novas vozes que mudam, se atualizam, se multiplicam, se recriam,
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 110
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
no tempo e no espaço, pois “quando a voz é instrumento da tradição, o que nela domina é
variação, nunca um produto plenamente constituído e acabado” (ZUMTHOR, 2010, p. 15).
É dentro desse panorama de inacabamento das tradições orais que se encontra a
tragédia Vaqueiros. A peça é inspirada em Dona Dina, Mestra da Cultura do Ceará, que se
tornou vaqueira. Em uma profissão dominada por homens, Dona Dina sempre esteve à frente
do seu tempo, enfrentou a sociedade sertaneja machista, formou a Associação dos Vaqueiros,
Aboiadores e Pequenos Criadores dos Sertões do Canindé, nos anos 1980, e veio a ser a
primeira mulher presidente de uma associação de vaqueiros por seis mandatos.
A partir dessa história da vida real, que poderia ser contada num folheto de cordel, ou
por repentistas em uma feira do sertão, Barrroso cria os personagens e o enredo que compõem
Vaqueiros. Encenada em 2002 pela Companhia Boca Rica de Teatro
57
, a peça possui quatro
personagens que formam uma família: Mira (vaqueira), Carneiro (comissário de polícia e
esposo de Mira), Lua (filha de Mira e Carneiro) e Vulcano (ferreiro e pai de Mira). Os
membros desse núcleo familiar têm uma relação conflituosa, primeiramente, por Mira ser
vaqueira, presidente da associação de vaqueiros e tocar sanfona. Depois, pelas lembranças
referentes ao primeiro marido de Mira, Raimundo, que também era vaqueiro, morto
supostamente num acidente, que sempre surgem nas discussões que ocorrem entre ela, o seu
atual marido e seu pai.
É desse fio de reminiscências que numa noite, na ferraria, inicia-se uma trama
conflituosa marcada pela tragédia. Assim para colocar o leitor/espectador dentro desse clima
que permeia o texto teatral, Vaqueiros começa com Vulcano cantando uma narrativa popular
oriunda da tradição oral nordestina que anuncia, como uma profecia, os acontecimentos
futuros, trágicos, que envolvem a sua família:
Vulcano: (Cantarolando, com letra bem audível)
Guardando um silêncio profundo
Mais fundo que um poço de dor
A infanta procura os pais
Por fim junto ao quarto chegou.
E mesmo co’a porta fechada
Sem ver o que lá se passou
Sentiu junto ao peito a pontada
Aviso de grande terror.
Gritou co’a voz engasgada
Prevendo o desfecho fatal:
Aqui só me cheira tragédia
Aqui me fede sangue real. (BARROSO, 2011, p. 25-26)
Nessa narrativa inserida logo no início da peça, em que a infanta se depara com o
destino fatal de seus pais, encontramos uma marca de oralidade, como a expressão co’a, e a
clara indicação que o ferreiro está cantarolando-a, “com letra bem audível”, mostrando a
importância da letra não somente escrita, mas falada de forma bem perceptível, que ela se
tornará corpo no momento da encenação
58
. Aqui também se revela a posição do dramaturgo,
57
A Companhia Boca Rica de Teatro foi fundada em Fortaleza, em 1995, com o objetivo de colocar na prática
teatral “um trabalho artístico e sociocultural” baseado “na pesquisa e na recriação das tradições cênicas
populares”. É formada por pesquisadores, artistas, professores, atores, dançarinos, acrobatas, sicos.
58
É preciso salientar que texto teatral, apesar do seu caráter literário, tem como função principal a sua
encenação, ou seja, o seu ato performático em que palavras ganham um corpo vivo, irradiando novos
significados e novas leituras.
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 111
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
enquanto ser responsável pela autoria, que para ele letra e voz, assim como para Zumthor,
estão em trânsito de convergência.
A voz representada nessa narrativa poeticamente dialoga com a tradição do teatro,
porque, assim como na tragédia clássica, no prenuncio inicial desvela-se o destino inevitável
dos personagens principais, no caso Mira e Carneio: a morte trágica. Este desfecho ocorrerá
devido aos embates vivenciados pelo casal que revelará os conflitos das relações na sociedade
patriarcal sertaneja, marcada pelo arcaísmo e opressão e resistente as transformações sociais
da contemporaneidade. Desse modo, ao observar as vozes da experiência trágica em
Vaqueiros, compreende-se “mais a fundo o contorno e a conformação de uma cultura
específica” (WILLIAMS, 2002, p. 69).
Por isso, o título da peça ao se referir ao vaqueiro, trata daquele homem que na cultura
do sertaneja é vista como herói. “Guerreiro encourado”, “filho rude da caatinga”, homem
destemido, forte, valente, ele permeia o imaginário popular pela sua heroicidade se tornando o
cavaleiro do sertão:
Foi ele a personagem central da chamada civilização do couro, baseada na
pecuária, ciclo econômico que dominou todo o Ceará colonial. Sob sua
liderança, à frente dos rebanhos de gado, deu-se a ocupação de seu território
e estruturou-se sua organização social. Não como negar que vem dele
nossa natureza nômade, nosso jeito despojado de viver, nosso individualismo
sem peias, nossa vocação para o ócio criativo e a imaginação, porque o
vaqueiro é o cavaleiro andante do sertão, o herói de cordel e cantorias.
59
As características e acontecimentos épicos do vaqueiro ganham nova expressão na voz
da vaqueira Mira. Ela não é nenhuma heroína. É uma mulher comum, sertaneja, que deseja ter
o seu espaço reconhecido na família e na sociedade. Então ao assumir o seu posto de
vaqueira, ela representa a voz feminina que enfrenta o machismo para realizar tarefas
consideradas inadequadas para uma mulher e ser livre para fazer aquilo que quiser nos
diversos âmbitos sociais.
Contudo ao se tornar vaqueira, Mira não está somente buscando afirmar-se como
mulher, num espaço predominantemente masculino, ou lutando para ocupar um novo lugar no
ambiente sócio-familiar, ela também quer realizar um desejo de Raimundo: “[...] Toquei
sanfona, toquei, até ele morrer. Só quando morreu fiz a vontade dele, ser vaqueira” (2011, p. 28).
Mira não consegue se libertar da memória do marido morto e consequentemente do
amor que sente por ele. Raimundo está nos seus pensamentos e até no seu modo de se vestir,
pois ela veste o gibão de couro que era dele como forma de identificar-se como mulher
vaqueira e líder dos vaqueiros, de romper com os padrões estabelecidos, e de tornar a figura
do ex-marido presente mesmo na sua ausência total e definitiva.
Este posicionamento de Mira incomoda profundamente Carneiro. Ele sabe que no
fundo não é objeto do amor da mulher e nem a referência para o clã familiar, que até na
hora de acalentar a filha, ela canta um abaio
60
que narra a história de Raimundo, enaltecendo
suas qualidades:
59
Esta citação foi retirada do folder da exposição permanente intitulada Vaqueiros que retrata a vida do
vaqueiro no sertão e tudo o que permeia o seu universo. Organizada por Oswald Barroso, em 1999, a
exposição encontra-se no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em Fortaleza.
60
Canto típico do nordeste brasileiro, é um canto sem palavras, entoado pelo vaqueiro ao conduzir o gado para
o curral ou durante o trabalho de guia-lo para a pastagem. Possui melodia lenta, adaptada ao andar vagaroso
dos animais. também o aboio em verso. Nesse caso, são poemas com temas agropastoris provavelmente
de origem moura e que deve ter chegado ao Brasil por meio dos escravos mouros da Ilha da Madeira,
território pertencente a Portugal.
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 112
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
Mira: Feito um barbatão formoso
Era o vaqueiro Raimundo.
No seu alazão famoso
Cortou mata, correu mundo.
Era um boi misterioso
Do segredo mais profundo.
Belo como um reis de mouro
Sua espada era um facão
Sua coroa era de couro
De marfim seu coração.
Mas numa tarde de agosto
Raimundo foi derrubado.
Um galho bateu em seu rosto
Do cavalo foi jogado.
Morreu com grande desgosto
O cavaleiro encourado.
Êêêêôôôô vida de gado! Êêê... (2011, p. 37)
Esta atitude de Mira incomoda profundamente Carneiro, que está sempre
demonstrando seu descontentamento e seu ciúme: “Olhe o que ela canta, Vulcano, para
adormecer a menina! fala nele, pensa nele(2011, p. 37). O canto rimado de Mira
expressa a sua ligação profunda com Raimundo e exterioriza a lembrança sempre presente do
marido morto a ponto de querer que ele seja um exemplo de valentia e coragem para a sua
filha. O ato de cantar realizado por ela gera uma vocalidade que traz a voz do passado, ou
seja, de Raimundo, corporificando-a sob o enfoque da experiência presente. Um morto com
presença viva.
Isso levará Carneiro a um ciúme cego do vaqueiro já falecido. Este sentimento que faz
Mira sempre salientar ainda mais a sua admiração por Raimundo gera incompreensões e
diálogos conflituosos entre os dois.
Uma forma de estabelecer um canal de comunicação minimamente pacífica entre eles
ocorre, primeiramente, por meio da contação de uma história de cordel, que simboliza, dentro
do texto teatral, a diferença de olhar diante da realidade do casal: uma princesa que vivia
triste, chorosa, saudosa do seu príncipe morto antes dela dar-lhe um filho. Um dia ela
encontra o filho de um pescador e conta a causa da sua tristeza. Então para se casar como
princesa e recuperar a sua alegria, o menino humilde aceita tornar-se igual ao príncipe amado
por ela. Eles se casam e têm uma filha. A história termina com uma final feliz na narração de
Mira, mas, ao continuar o relato, ganha um desfecho um infeliz no relato de Carneiro:
Mira: A princesa acabou amando o menino pobre, filho do pescador, ele se
desencantou e a princesa recuperou a sua alegria. Aí acabou a história.
Carneiro:que a história continuou. Acontece, que a princesa nunca tirou
seu antigo príncipe da cabeça. Só falava nele, para tristeza do filho do
pescador, que mesmo casado com a princesa nunca teve seu coração.
Continuou encantado e seu consolo era sua filhinha, que ele também amava
muito e parecia com a mãe. (2011, p.44)
A partir da história de cordel inserida no texto teatral, portanto, oralizada na
performance, Carneiro se depara com sua própria voz, reflexo da tristeza sentida por não ter o
seu amor correspondido, revelando aquilo que habita em seu ser. Mira chega a se comover, no
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 113
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
entanto, como diz o ditado popular, ela “não o braço a torcer” e permanece firme no seu
posicionamento.
Assim, ao utilizar uma história de cordel, geralmente contada, dentro da peça, o
dramaturgo mostra que as narrativas escritas ou vocalizadas não são somente uma prática
cultural de uma região específica, mas elas também são vozes que representam as
divergências na relação entre o eu e o outro.
Na escritura do texto teatral, o dramaturgo ou o artista “não dispõe de meios para fazer
escutar a voz” (1993, p. 125), sentida e ouvida no seu potencial máximo na performance,
“mas pelo menos a cita intencionalmente naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de
sugerir ao ouvido a realidade sonora” (1993, p. 125).
Nesse sentido, entre “letra e voz”, a tessitura dramatúrgica é construída e nela, para o
clímax trágico da peça, insere-se um entremeio
61
do Reisado de Caretas
62
, folguedo
tradicional da cultura popular nordestina. No Reisado, as linguagens artísticas, canto, dança,
música, voz, máscara, teatro entrelaçam-se, sendo que o entremeio do Boi é o mais
importante. Por isso, não é por acaso, que o dramaturgo o coloca na escritura teatral dando ao
texto teatral linguagem híbrida e metateatral.
O entremeio do Boi, além de dialogar com o título da peça, com a personagem
principal e ser um teatro dentro do teatro, portanto um metateatro, torna-se uma metáfora da
situação conflituosa vivenciada pela família. Nesse caso podemos dizer que, em Vaqueiros,
uma metateatralidade que tende a assumir um papel metafórico em relação ao embate que
ocorre devido ao apego de Mira pela memória de Raimundo e a sua mudança de
comportamento diante do marido machista e da sociedade patriarcal sertaneja: “Uma
metateatralidade que se debruça sobre si mesma para olhar para fora e, consequentemente,
conduzir o olhar, nesse espiralar, para dentro da própria linguagem” (NOSELLA, 2012, p. 4).
Então com Lua puxando um boi de brinquedo, Mira e Carneiro usando máscaras,
formando o composto pela velha careta e pelo velho careta
63
e Vulcano como Babau
64
,
começa o espetáculo, a brincadeira do boi, com Mira cantando:
Mira: Anda pra frente boi velho,
dá um berro e cheira o chão,
pois está relampeando, boi velho,
tá chovendo no sertão.
Pois está relampeando, boi velho,
tá chovendo no sertão. (2011, p. 48)
A palavra cantada por Mira e escrita no texto teatral nos mostra, como afirma Ong,
que “todos os textos devem de algum modo, estar diretamente ou indiretamente relacionados
ao mundo sonoro, habitat natural da linguagem, para comunicar seus significados” (1988, p.
61
De acordo com Barroso, o Reisado “se estrutura na forma de um cortejo de brincantes, representando a
peregrinação dos Reis Magos à Belém, e se desenvolve, em autos, como uma rapsódia de cantos, danças e
entremeses incluindo obrigatoriamente o episódio do boi” (2013, p. 25).
62
De acordo com Barroso, “entremeios são quadros nicos que compõem o Reisado. Seus personagens não
fazem parte da estrutura fixa da brincadeira, entram apenas na que lhes cabe (2013, p. 103).
63
O velho careta é casado com a velha careta. Eles formam o casal cômico na brincadeira do boi. São chefes da
família dos Caretas, cada qual com sua profissão.
64
“O Babau é um cara mascarado, com a roupa de estopa e uma palhona de palmeira, ele escanchado naquela
palhona, fazendo toda latomia, ali, com aquele pessoal. Rinchando que nem um animal, com uma cabeça de
burro ou cavalo” (BARROSO, 2013, p. 236)
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 114
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
16). É buscando essa comunicação que o uso das máscaras por Mira e Carneiro, para
representar a velha careta e o velho careta, ganha novos sentidos.
A máscara era um elemento usado na tragédia grega. Novamente, o dramaturgo
delineia o seu ponto de partida, mostra com qual tradição está dialogando para à sua maneira
representar um universo de sentimento preciso. Em Vaqueiros, podemos observar que a
máscara não é apenas um objeto artístico, indicado no texto escrito e essencial na
performance, para cobrir o rosto de uma personagem, mas é um meio de dinamizar o jogo
dramático, fortalecer as linhas de discussões estabelecidas, ressaltar a mensagem que se
deseja transmitir, pois segundo Peter Brook, “uma máscara se constitui sempre numa via de
mão dupla; envia uma mensagem para dentro e projeta uma mensagem para fora (1994, p.
292). Nessa mensagem pode-se ter um ressoar de voz, dando-a a quem não tem ou a quem
precisa dela para se reafirmar como sujeito individual e coletivo como percebemos na peça.
Nesse sentido, o folguedo com todos os seus elementos dentro da peça - máscaras,
cantos, personagens, diálogos salpicados com pitada de humor - é uma forma que possibilita
um ressoar das vozes de Mira, Carneiro e Vulcano, a fim que eles possam transmitir uma
mensagem própria e se afirmarem como sujeitos individuais e coletivos. O folguedo também
um caráter lúdico a escritura teatral, aliviando por um momento a relação conflituosa e
tensa do casal ao mesmo tempo que prepara o leitor/espectador para os acontecimentos
trágicos que se aproximam por meio de um jogo teatral permeado de gestos, símbolos, signos.
Por estarem mascarados, Mira e Carneiro brincam, se auto representam, apropriam-se
de outras vozes, porém continuam portadores de vozes identitárias, dissonantes, que irão até
as consequências irremediáveis para defender o seu ponto de vista na família e na sociedade.
Vozes em embate com as lembranças e as transformações nas relações de nero. Como diz
Zumthor: a voz não cessa de cobrir e descobrir um sentido que ela ultrapassa, submerge,
afoga, projeta, e que parasita seu maior poder” (1993, p. 158).
Durante o folguedo, assim como na peça, há uma luta entre o boi e velho careta. Logo,
em seguida, aparece Babau, representado por Vulcano, “um velho encaretado, com paletó
velho”, gravata, sem camisa, e um facão na mão” (2011, p. 50). Ele conversa com a velha
careta (Mira) e o velho careta (Carneiro) sobre o boi. Durante o diálogo percebe-se que a
representação é sobre os dilemas da vida conjugal da vaqueira e do comissário de polícia: a
presença de Raimundo, vaqueiro morto, como um fantasma no relacionamento deles e o
trabalho inaceitável de Mira como vaqueira não somente pelo fato dela ser mulher, mas
também por essa profissão ser uma herança do marido morto e ligá-la cotidianamente a sua
memória. Então com expressão comumente utilizadas na linguagem sertaneja, como “seu
cabra”, “alma danada de boi”, Babau diz que vai matá-los. Prenúncio do irrevogável do
destino de Mira e Carneiro:
Vulcano (Como Babau): Você quer matar meu boi, não é seu cabra sem
vergonha? Pois vai ser eu quem vou lhe matar. Vou matar você e essa negra
atrevida que ficou lhe atentando.
Mira (Como velha careta): E quem é você, seu velho infeliz?
Vulcano (Como Babau): Eu sou a mandinga desse boi que vocês quiseram
matar.
Carneiro (Como velho careta): Pois eu acabo com essa alma danada de boi.
Vulcano (como Babau): Você não me mata porque eu sou também um
vaqueiro. E você não é. Nem você, sua atrevida, porque você pensa que é
vaqueira como eu e não é. Vou matar vocês dois. (2011, p. 50)
Ao final da conversa, como Lua fica assustada, até com medo, Vulcano, Mira e
Carneiro tiram as máscaras e encerram a peça dentro da peça. No caso de Vaqueiros pode-se
afirmar que a metateatralidade não é apenas uma característica inerente, ela é utilizada como
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 115
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
forma dialógica e reflexiva, tornando-se um instrumento do debate e permuta de ideias e de
visões de mundo irreconciliáveis.
Nessa trilha, a peça se encaminha para o seu desfecho trágico com uma descoberta
impactante: Carneiro revela a Mira que, na verdade, Vulcano matou Raimundo, como um
modo de vingar-se por sentir inferior e menosprezado na sua própria casa:
Carneiro: Diga a ela, Vulcano. No corpo do Raimundo descobriram uma
marca de ferro, no lombo, como uma rês.
Vulcano: Seu corno sujo. Por que foi inventar isso?
Carneiro: Pra ela saber, o que eu sabia. E nem precisou encomenda do
velho Justino. Decisão dele mesmo empurrar o homem. Derrubar com o
ferrão. (2011, p. 56)
Mira pede ao pai para sair. Sozinha com Carneiro, diante da forja, inicia-se uma nova
briga, porém a derradeira. Sabendo a verdade sobre a morte de Raimundo, ela parece se sentir
livre para manifestar a Carneio, de forma clara, os seus verdadeiros sentimentos. Depois de
uma sequência de violência verbal em que a “voz e letra” expõe ainda mais as chagas abertas,
Mira faz um discurso longo em que o orgulho de Carneiro, como homem, é ferido
brutalmente:
Mira: Pois quer saber, pois quer saber, eu amo Raimundo sim, e ainda mais
agora, sabendo disso. Trago ele dentro de mim. vendo meu gibão, tá
vendo meu guarda-peito, vendo minhas esporas, minhas luvas, minhas
perneiras? Pois são as dele. Quer saber porque eu nunca mudei meu
sobrenome, porque me chamo Pereira, como ele? Porque é pau que não
enverga muito homem. Sim, eu amo esse homem. É ele que ainda hoje me
faz ser alguém, me faz terem respeito por mim. Eu, em cima do cavalo, feito
um guerreiro encourado, o corpo seco pelo sol, queimado que nem a
caatinga, a cara dura, o corpo feito um mourão, uma estaca, sem dobra, se
confundindo com o cavalo.
Mira: [...] É por isso que você me quer, Carneiro, porque eu sou vaqueiro,
uma mulher valente, que enfrenta careta de qualquer um, que monta cavalo
brabo, derruba barbatão, você se apaixonou por mim, porque eu sou uma
vaqueira admirada como Raimundo era. Você morre de inveja dele, porque
você não é como ele, nunca soube montar um cavalo como gente, como
homem do sertão. Só deu mesmo pra ser Vice-Presidente, um secretário, um
burocrata que escreve o livro de atas. Ou então um polícia, que só faz
serviço sujo, bate em preso. Mas você queria ser assim como eu sou, como o
Raimundo era. Você está olhando pra mim e pensa que eu sou eu, que você
está me vendo aqui, mas quem está aqui é o Raimundo, vivinho da silva.
Meu pai não conseguiu mata-lo quanto mais você. (2011, p. 57-58)
Sentindo-se completamente humilhado, Carneiro quer honrar a sua hombridade
ameaçando Mira e dizendo que ele também sabe “ferrar gado”. Ela não acredita na ameaça do
marido. Contudo, ele não está para brincadeira e diz: “vou marcar o que é meu. Vou mostrar
quem é vaqueiro aqui” (2011, p. 59). Mira, mesmo temorosa, fala que ele não tem coragem,
intensificando o ódio sentido por Carneiro. Então ela pega uma faca dizendo: “Tá certo,
primeiro a gente tem que derrubar o boi, pra depois marcar, não é?” (2011, p. 59). Em
seguida, ele esfaqueia Mira. Não satisfeito com a morte da mulher, ele pega um ferro em
brasa e marca o rosto dela. Vulcano, ao se deparar com a filha morta, parte para cima de
Carneiro e o mata também com uma faca. Todo esse acontecimento trágico é visto por Lua. A
pequena menina vive a tragédia anunciada, o destino irrevogável dos pais. Após “um grito
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 116
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
alto e longo”, ela junta o corpo da mãe e o corpo do pai. Agora somente com a morte, o que
não deixa de ser uma contradição, eles estão juntos e em paz. Então, Lua canta o romance de
abertura da peça, em que a infanta também com “voz engasgada” presenciou uma tragédia e
viu o sangue real.
Portanto, Vaqueiros é uma tragédia contemporânea que começa e termina com uma
narrativa marcada pela tradição oral. Demonstrando que essa tradição é um instrumento de
diálogo diante das mudanças sociais que permeiam a relação entre homem e mulher na
contemporaneidade.
Diante desse fato, o dramaturgo ao colocar na escritura do texto teatral a “vocalidade”
da tradição popular nordestina possibilita que letra e voz convivam em diferentes graus de
interação no tecido textual, representando tensões, vozes dissonantes e “oposições conflitivas”
daquele ser que deseja o reconhecimento e a escuta, enquanto sujeito individual e coletivo,
para ocupar o seu lugar no tempo, no espaço, na história, na vida e assim ser uma “presença
da voz” e da palavra na sociedade.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Oswald. Vaqueiros. In: Entre ritos, risos e batalhas. Fortaleza: SECULT/CE,
2011.
__________. Teatro como encantamento: bois e reisado de caretas. Fortaleza: Armazém da
Cultura, 2013.
BROOK, Peter. Ponto de mudança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
MAGALDI, Sábato. Os dramaturgos. In: Cem anos de cultura brasileira. Rio de Jnaeiro:
Academia Brasileira de Letras, 2002.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
NEWTON JÚNIOR, Carlos. Oswald Barroso e o teatro nordestino. In: Entre ritos, risos e
batalhas. Fortaleza: SECULT/CE, 2011.
NOSELLA, Berilo Luigi Deiró. Jorge de Andrade e a metateatralidade da consciência
histórica. In: O Percevejo online. Periódico do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas
PPGAC/UNIRIO. Volume 04. Número 01. janeiro-julho de 2012.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra escrita. Trad. Enid
Abreu Dobranszky. Campinas, São Paulo: Papirus, 1998.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
__________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz e
Maria Inês de Almeida. São Paulo: HUCITEC, 1997.
BOITATÁ, Londrina, n. 26, ago.- dez. 2018 117
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
[Recebido: 20 jan. 2019 Aceito: 15 jun. 2019]