No entanto, havia muita gente jovem, tanto na plateia entre os admiradores e violeiros
quanto no palco entre os convidados palestrantes, pessoas que provavelmente nasceram nas
cidades e que, pela faixa etária, mesmo que nascidos no campo, não presenciaram o modo de
vida caipira de que trata as músicas. Como compreender a comunhão que manifestaram com
os causos e temas das modas dos velhos violeiros? Como explicar a autenticidade da música
caipira de uma violeira e compositora de 20 anos de idade, como é o caso de Letícia Leal? O
que explica a dedicação de Ivan Vilela à pesquisa da música caipira, um professor,
compositor e violeiro de apenas 55 anos? Porque os jovens netos do Sr. José Maria, do Grupo
de Catira Pedro Pedrinho, se interessam por essa dança folclórica e treinam diariamente,
participam de eventos e mantém aulas para crianças no grupo já numeroso de catira em
Martinho Campos?
Uma justificativa é que, ainda segundo Halbwachs, a memória é moldada pelas
influências sociais e coletivas a que o ser é submetido. Sendo assim, buscando-se conhecer a
história de vida dessas pessoas verifica-se que alguém de seu convívio, alguém próximo ou
mesmo uma comunidade, foi responsável por apresentar a elas e inseri-las nesse universo
caipira. No entanto, apenas o conhecimento ou convívio com uma cultura não nos torna parte
dela, é preciso haver algo além, uma identificação mais profunda e uma prática que torne o
ser verdadeiramente a ela integrado.
Essa identificação profunda pode ser compreendida pelos três sujeitos de atribuição da
lembrança: eu, os coletivos, os próximos (RICOEUR, 2007). Segundo o filósofo
fenomenologista, além das lembranças que a própria pessoa possui ou elabora, os coletivos, o
grupo de pertencimento, também é um atribuidor de lembranças, visto que pode confirmar ou
corrigir algo de que se lembra e foi partilhado, bem como o grupo pode trazer à tona uma
lembrança de que o sujeito não tem clareza mas que bebe nessa fonte para completar a sua
própria. Os próximos, aqueles que atestam nossa existência, nos atribuem lembranças como
espécies de testemunhas e são os responsáveis por nos inserir num contexto social, daí a
relevância de sua memória para confirmar a minha. Mesmo que a lembrança de um
acontecimento seja intransferível de um ser para o outro, pois cada um que se lembra o faz
sob o seu ponto de vista, o “lembrar-se de algo é lembrar-se de si” (RICOEUR, 2007). Sendo
assim, e voltando às questões colocadas anteriormente, a constituição de um sujeito, seja
material ou social, passa necessariamente por suas origens, portanto, a atribuição de
lembranças de um próximo é também fator de constituição de quem sou eu e busco em suas
lembranças algo em que eu possa me identificar.
O jovem que está inserido na cultura caipira, quando não é nativo do ambiente rural, o
faz porque algo nela lembra-o de si próprio, mesmo que essa lembrança seja, na verdade, de
alguém próximo, seja de um acontecimento vivido “por tabela” (POLLAK, 1992) por alguém
com quem o laço afetivo foi estruturante para a formação de seu caráter. Neste quesito a
cultura oral ocupa lugar de destaque, pois é passada de geração a geração, olhos nos olhos, o
que evidencia sua natureza afetiva. Essa afetividade da cultura oral creio ser o que constitui a
base comum relatada por Halbwachs.
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS apud POLLAK, 1989,
p. 4).
A cultura caipira, que é impressa nas músicas pelos instrumentos utilizados, pelo teor
das composições, pelas manifestações culturais que as rodeiam, pelos temas que canta, pode
ser então considerada uma memória coletiva? Certo que sim, se considerarmos a concepção