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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL ISSN 1980-4504
NOS (DES)CAMINHOS DA LITERATURA INDÍGENA NO RIO GRANDE DO SUL:
NARRATIVAS E NARRADORES GUARANIS CONTEMPORÂNEOS
Daniela Gebelucha (UFRGS)
Walmir Pereira (UNISINOS)
RESUMO: Esse artigo aborda, introdutoriamente, a literatura indígena Guarani no Rio Grande do Sul,
enfocando suas narrativas e seus narradores. Nosso objetivo consiste em refletir sobre processos de
oralidade e escritura das narrativas nas coletividades em tela. O estudo encontra abrangência em
análises de natureza literária e interdisciplinar (Cf. MELIÀ, 1984; CLASTRES; 1990; PEREIRA,
2012; GRAÚNA, 2013). Nossos resultados parciais indicam a permanência das práticas narrativas
orais entre os Guarani contemporâneos, textualidade que expressa etnosaberes e cosmovisão milenares
dessas coletividades originárias. Na investigação em curso, consideramos que a literatura indígena
demanda ser compreendida como continuidade espaço temporal ameríndia e de valorização da
tradição ancestral, das histórias de contato e dos mitos do povo Guarani.
Palavras-chave: Oralidade. Literatura indígena. Guarani.
ABSTRACT: This article broaches the literature of the Guarani indigenous people in Rio Grande do
Sul, focusing on their narratives and narrators. Our objective is to reflect on the processes of orality
and writing of the narratives in these indigenous collectivities. The study is circumscribed in literary,
anthropological and historical analyzes (Cf. MELIÀ, 1984; CLASTRES, 1990; PEREIRA, 2012,
GRAÚNA, 2013). Our previous results indicate the permanence of the oral narrative practices among
the contemporary Guarani in Rio Grande do Sul, a textuality that expresses millenial ethnic knowledge
of these native indigenous collectives. In these terms, we conjecture that indigenous research demands
that indigenous literature be understood as a possibility of continuity of time and valorization of the
ancestral tradition, of the worldview and of the stories and myths of the Guarani people.
Keywords: Orality. Indigenous literature. Guarani.
1. Introdução
Desde o princípio do século XVI até o presentíssimo contemporâneo a literatura
brasileira e regional sul rio-grandense com caráter, especificamente, indígena esteve
obliterada ou sem reconhecimento nos campos acadêmico e sociocultural.
Na investigação em tela, nominamos a arte procedimental do saber fazer a
narratividade ameríndia de literatura indígena. No que respeita à conformação e difusão
literária da mesma, partimos do axioma segundo o qual a tradição e a cultura dos povos e
coletividades
46
indígenas são comunicadas de geração para geração por meio da oralidade
cultivando vivas as narrativas nativas. Contemporaneamente, circunscrevemos o processo
social histórico de constituição da literatura indígena à presença material e simbólica da
escrita que registra e documenta as memórias, os mitos, os valores, as tradições culturais e as
histórias de contato dos povos e coletividades indígenas originários da terra brasilis.
46
Segundo o Dicionário Aurélio, é a qualidade do coletivo; grupo de pessoas organizado para um mesmo fim; a
totalidade dos indivíduos de determinada área ou região, em um dado tempo, se considerado como todo.
(COLETIVIDADES..., 2011).
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Corroborando a assertiva anterior, no presente artigo
47
, a literatura indígena dialogará
com aportes e contributos antropológicos, históricos e literários, por meio da análise de duas
narrativas Guarani produzidas por indígenas no espaço social e territorial regional
problematizando as transformações e o pensar essa literatura frente à sua relação com a
oralidade e a escrita. Apresentaremos questionamentos que sulearão
48
o estudo em tela como,
por exemplo, qual é o espaço tempo ocupados nas/pelas narrativas, qual o contorno das
narrativas guarani, quem são os narradores dessas narrativas, para quem elas se destinam, qual
a natureza da relação entre a oralidade e a escrita no contexto sociocultural dos Guarani no
Rio Grande do Sul.
2. Acostamentos antropológicos, históricos e literários
Os estudos do antropólogo e linguista Bartomeu Melià (1984) indicam que os Guarani
se transladaram para o atual território do Rio Grande do Sul por volta do século V da era
cristã, assentando-se nas cercanias do rio Jacuí. Tradicionais agricultores do mato, ao mesmo
tempo praticavam atividades de caça e pesca. Em período histórico ulterior remataram a
ocupação das bacias dos rios Uruguai e Jacuí, e, posteriormente, Ijuí, Piratini, Ibicuí, Pardo e
Taquari. As famílias extensas e os coletivos guarani produziram vastos deslocamentos
territoriais, mormente nos períodos em que as áreas de terras inicialmente colonizadas pelos
nativos perderam condição agricultável e faunística de plena sustentabilidade. Entretanto não
entendemos adequada a caracterização do povo Guarani como população nômade, mas sim
como “grandes caminhadores”
49
que reconhecem seu território ancestral tradicional
movimentando-se continuamente em seu interior.
De acordo com Clastres (1990), era distante do mundo euro referenciado que a
verdadeira vida dos indígenas se desenrolava: nas florestas continuava a reinar os antigos
deuses, sendo a substância espiritual marca indelével dos Guarani. Em sua perspectiva, caso o
ancoradouro religioso submergisse, a sociedade desmoronaria, pois é na fé que encontramos o
ethos desse povo indígena, reanimando-os a um espírito de resistência.
Para Rodrigues (2010)
50
, o século XVIII configurou momentos decisivos na história
dos povos indígenas e do Brasil Colônia. Um desses momentos foi a edição do Tratado de
Madri em 1750, pois, a partir de sua consecução, o então Continente de São Pedro tornou-se
palco da dizimação genocida de indígenas e das coletividades Guarani missioneiras em
confronto com os exércitos ibéricos na Guerra Guaranítica (1753-1756), com saldo brutal de
milhares de indígenas mortos.
A experienciação de existir e viver dos Guarani ao sul da América do Sul incide em
seu território de ocupação tradicional.
51
Segundo Meliá (2010), este povo indígena traz à baila
47
O presente artigo constitui um recorte da pesquisa realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso
intitulada “Nos (Des)Caminhos da Literatura Indígena Guarani no Rio Grande do Sul: Narrando ou
escrevendo...”
48
Sulear significa construir paradigmas alternativos em que o sul se coloca no centro da reinvenção da
emancipação social. (ADAMS, 2008, p. 397).
49
Em entrevista ao IHU On-line, Melià (2010) define os Guarani como “grandes caminhadores”, pois caminhar
é um “hábito que rememora a migração e também faz parte da vida espiritual do guarani”.
50
Aryon Dall'Igna Rodrigues (1925-2014) - linguista brasileiro.
51
De acordo com dados da SESAI (2015), existem aproximadamente 2.500 Guarani no RS, em sua maioria
pertencentes aos Mbya. O conjunto da população Guarani contemporânea do RS se reconhece como
descendente dos Guarani missioneiros, por se identificar com a experiência missioneira e (res)significar em
seus próprios termos a história das ruínas das reduções dos Sete Povos da Missões.
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uma concepção de território como o lugar em que o indígena e seu grupo familiar podem
viver seus costumes, tradições e o modo de ser Guarani:
[...] o guarani se refere ao seu território como ‘tekoha’. Pois bem, se o ‘teko
é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o ‘tekoha’ é o lugar
e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser
guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem
‘tekoha’ não ‘teko’. O ‘tekoha’ ideal é um monte preservado e pouco
perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas
silvestres. [...]. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da
boa terra guarani. (MELIÀ, 2010, p. 1).
Na perspectiva difundida em Melià (2010), ‘tekoha’
52
e ‘teko’ conformam conceitos
indígenas interconectados; visto que o território e o modo de ser Guarani transcendem
gerações. Ademais, sem o território ficam inviabilizadas as condições materiais e simbólicas
de viver em culminância a milenar cultura Guarani. É na “tekoha” que as coletividades vivem
a plenitude da vida junto à natureza, cultivando as tradições e ensinamentos de seus
ancestrais. Melià (2010) assevera, também, que uma ‘tekoha’ não é um lugar qualquer, mas
um lugar escolhido pela intervenção dos espíritos que orientam o referente espiritual guarani,
isto é, o xamã (karaí e kunha karaí)).
Os xamãs e os narradores indígenas têm participação fundamental no que respeita à
existencialidade da literatura indígena, pois ensinamentos, tradições, mitos e as cosmovisões
ancestrais ameríndias são transmitidos de geração para geração por intermédio das narrativas
que são narradas e vivenciadas nas coletividades. Essa tradicionalidade espaço temporal
constitui o fio condutor da literatura contemporânea do povo indígena Guarani.
Em análise dos estudos realizados sobre a literatura indígena contemporânea Graúna
(2013)
53
pontua dois momentos singulares de manifestações literárias produzidas por autores
indígenas no Brasil: o clássico refere-se à tradição oral, ocorrendo no âmbito coletivo, que
permanece no tempo com as narrativas míticas e o contemporâneo referenciado à tradição
escrita individual e coletiva, por intermédio da poesia, da narração de histórias aportadas
nas narrativas míticas e na história processo, enfatizando o ponto de vista indígena.
Segundo Fernandes (2002)
54
, existem diferenças entre narradores e contadores de
história:
A diferença principal entre o contador de histórias e o narrador está no fato
de que o primeiro é um ator, que tem por objetivo principal a interpretação; o
segundo é um membro da comunidade narrativa que está compartilhando
experiências. Para o narrador, a potencialidade de materialização do texto é
menos significativa do que a mensagem que ele visa comunicar. [...].
(FERNANDES, 2002, p. 329.).
52
Melià faz uso do termo “tekoha” em língua espanhola. No Brasil, “tekoá”. No texto, quando a expressão
“tekoha” for utilizada, fará menção ao autor .
53
Graça Graúna Doutora em Teoria Literária (UFPE) e Pós-Doutora em Educação, Literatura e Direitos
Indígenas (UMESP). Escritora Indígena - descendente do povo Potiguara (RN).
54
Frederico Fernandes Doutor Teoria Literária (UNESP), Pesquisador de narrativas e oralidade pantaneira.
Professor na Universidade Estadual de Londrina UEL.
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Para Graúna (2013), em termos da literatura contemporânea e tratando-se de literatura
indígena, as definições e os conceitos formatados esbarram em um preconceito literário que
mascara polêmicas doutrinais. No cânone, essa literatura indígena sequer aparece enquanto
corpus narrativo dotado de singularidade, dado que está à margem e raros autores,
pesquisadores e críticos literários percebem sua existência. Mesmo com a falta de
reconhecimento, a autora reconhece que as vozes dos indígenas não se calam, eles, os sujeitos
narrativos indígenas, continuam a narrar e a escrever. Os textos literários de autoria indígena
tratam de problemas e perspectivas que tangenciam e reafirmam as identidades e as culturas
indígenas, pois o espaço da literatura indígena potencializa um lugar de um outro mundo
possível. Visto que a construção desse novo mundo se confronta com questões de natureza
identitaria, as quais devem ser discorridas, esclarecidas e confrontadas com os textos de não
indígenas.
De acordo com Graúna (2012), a palavra que o indígena proferiu ecoa e ecoará como
um sinal de permanência cultural e luta contra as subversões suscitadas pela cultura
dominante. Para a autora, uma das formas de permanência da tradição nas coletividades
indígenas sobrevém pela literatura, pois nela se reafirma o modo de ser, estar e viver no
mundo. Graça Graúna (2012) assevera que a literatura é, também, um instrumento para
refletir sobre os massacres cometidos pelos colonizadores contra os povos indígenas. Assume
assim, essa literatura indígena contemporânea, uma forma de cantar a paz e a esperança de
dias melhores para a população indígena e compartilhar as histórias de resistências porque a
palavra indígena sempre existiu, antes mesmo da colonização.
3. Ao encontro das narrativas indígenas
A rigor, para uma história ser narrada precisamos de um narrador; aquele que narra
deixa transparecer ao ouvinte, não somente o seu conhecimento, mas o que transcende ao seu
redor, não bastando unicamente a trama dos eventos e a história, necessitando sensibilizar
quem escuta.
De acordo com Pereira (2012), o pensamento e a ação social histórica Guarani,
manifestos em narrativas e tradições orais gravadas na memória coletiva ancestral, vem sendo
atualizados e (res)significadas nas práticas sociais presenteístas. Conforme o autor, por meio
das memórias e experiências vivenciais dos Guarani, etnosaberes milenares instaurados no
cotidiano ameríndio acabam (res)significados pela leitura contemporânea das narrativas e dos
mitos de origem indígena.
Com intuito de dialogar e perceber alguns aspectos presentes nas narrativas indígenas
Guarani no RS, recorremos ao corpus literário/científico específico que foi coletado por
integrantes de organização não governamental com reconhecida experiência de atuação junto
aos povos e coletividades indígenas
55
. Esse corpus contém narrativas que serviram como base
para a publicação do Caderno Semana dos Povos Indígenas 2009 Modo de Ser Guarani
Mbya Reko Regua, pela referida instituição.
56
Quem narra esses textos, relata aspectos relevantes das narrativas presentes nas aldeias
indígenas, conforme podemos observar na narrativa 01:
55
Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN), instituição que pertence à Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
56
Duas dessas narrativas, na íntegra, foram incorporadas a este artigo que nos propiciaram algumas discussões
pertinentes: a narrativa 01 que foi narrada por um professor indígena da Tekoá Anhentegua (Aldeia
Verdadeira), Porto Alegre/RS e a narrativa 02 que foi narrada pelo referente político da Tekoá Andú Vera
(Aldeia Mato Preto) Erebango/RS
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Eu sou Jackson Alexandre Ramos. Moro na comunidade indígena Guarani
chamada Anhetengua. O nome da aldeia significa Aldeia Verdadeira. Ela
fica em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Quando, junto com meus
parentes, escolhemos o assunto educação para o caderno da Semana dos
Povos Indígenas, pensamos em contar para as crianças, os jovens e também
para os adultos, como o povo Guarani educa os seus filhos. Na nossa aldeia
valorizamos muito os conselhos que nossos avós nos dão. Todos os dias de
manhã os guaranis visitam os avôs e as avós da comunidade para ouvir os
conselhos deles. Nestes conselhos os idosos ensinam a viver de maneira
certa. Explicam que devemos fazer o bem para as pessoas. Pedem que todos
respeitem as outras pessoas. Aconselham a ajudar a cuidar dos idosos, por
exemplo. Esses conselhos são valores do povo Guarani. Em todas as aldeias
Guarani, ouvimos estes mesmos conselhos dos idosos. Eles estão
preocupados com o futuro do povo Guarani, por isto aconselham muito os
jovens. No futuro estes jovens serão idosos e irão aconselhar os jovens
também. Assim estes valores nunca irão se perder. As pessoas idosas da
nossa aldeia à noite contam histórias. Falam da sua juventude e de como
viviam e seguiam os conselhos dos seus avós. Contam, também, histórias de
animais para as crianças [kiringue] conhecerem e muitas delas para as
crianças rirem. Eu sou pai e quero muito que minha filha cresça no jeito de
ser Guarani. No momento em que ela entender as palavras, devo dar
conselhos a ela. Tenho as orientações guardadas, pois as recebi dos meus
avós. Para vocês, crianças e jovens, gostaria de dar um conselho: visitem
mais seus avós para ouvir as aprendizagens que eles têm para passar para
vocês e ouçam as histórias que eles têm para contar. Para os adultos, pais e
mães, gostaria de sugerir que usem mais tempo para conviver e aconselhar as
suas filhas e os seus filhos. Na educação das crianças e jovens é importante
ter tempo e paciência. Devemos dar conselhos todos os dias e também
acompanhar as crianças e os jovens para ver como fazem as coisas. Olhar
para a criança e acompanhá-la naquilo que faz. A criança e o jovem
precisam de liberdade para aprender, mas os adultos devem estar por perto
para orientar e aconselhar. Nós, o povo Guarani, por exemplo, usamos o
ambá para que a criança aprenda a caminhar. A sociedade não indígena
chama o ambá de andador (ver foto...). O amfica no pátio, fora de casa,
junto às árvores. É uma segurança para a criança, pois ela pode segurar-se
nele. Ao mesmo tempo, a criança não fica presa. Pode sair dali para outro
lugar. O pai e a mãe colocam a criança no ambá e observam ela. Mas ela
caminha sozinha e tem liberdade de sair e voltar dali. O ambá é como os
conselhos dos idosos, que ajudam os guaranis a viver e caminhar de maneira
certa. (NARRATIVA 01).
Segundo Fernandes (2002), “[...] o narrador é membro da comunidade narrativa que
está compartilhando experiência [...]” (FERNANDES, 2002, p. 329), diferente do contador
que é um ator. Destarte, avocamos como narrador o indígena guarani que imprime
comunicação às narrativas, neste caso o narrador 01 integrante da tekoá Anhetengua. O
Guarani narrador fez parte e, em muitos casos, viveu o que narrou ou narrou algo que lhe foi
transmitido por seus antepassados. Compreende-se que o narrador da narrativa 01 refere-se a
outros narradores quando menciona: as pessoas idosas da aldeia, avôs e avós. Essas pessoas
narram histórias para as kiringue Guarani e outros indígenas da aldeia, pela tradição oral,
evocando o modo de ser Guarani.
Identificamos, na narrativa 01, que as histórias narradas encerram temáticas variadas
como a vivência da juventude, os ensinamentos dos antepassados e de como o Guarani pode
viver o tekó. Quando o narrador relata “[...] nesses conselhos ensinam a viver de maneira
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certa [...].” Observamos que as narrativas persistentes nas tekoás, igualmente, têm caráter de
aconselhamento aos jovens e de orientação sobre a organização da vida e do modo de ser
Guarani, mediante exemplos narrados pelos mais velhos. Essas experiências em que o
narrador narra um fato tem o intuito de estabelecer relações com o que ele viveu e com sua
capacidade de transmitir, designadamente, um ensinamento sobre a cultura ancestral Guarani.
Quanto aos conselhos e ensinamentos narrados nas coletividades: “[...] pedem que
todos respeitem as outras pessoas. Aconselham a ajudar cuidar dos idosos, [...].” Constata-se
que os conselhos dos mais velhos são muito importantes para os indígenas. Uma vez que
existe uma grande preocupação desses narradores mais velhos com relação ao respeito para
com as outras pessoas e com o cuidado para com as pessoas idosas, dado que estão
preocupados com o futuro dos indígenas e, por isso, aconselham os mais jovens e as crianças.
No fragmento: [...] eu sou pai e quero muito que minha filha cresça no jeito de ser Guarani.
No momento em que ela entender as palavras, devo dar conselhos a ela. Tenho as
orientações guardadas, pois as recebi dos meus avós [...]”, verificamos que o narrador dessa
narrativa se preocupa com o futuro de sua filha e manifesta o desejo de que ela cresça sendo
aconselhada e conhecendo os valores de sua cultura, assim como ele, que também, recebeu as
orientações de seus avós, aconselhará sua filha como uma forma de continuidade da tradição.
Também, podemos observar que a partir do momento do entendimento das palavras, a criança
deve ser orientada e aconselhada, ou seja, desde pequena, a criança estabelece a relação de
sentido e de orientação social e cultural por meio dos pais e avós.
A fim de apreender aspectos relacionados ao espaço-tempo e às características do
território tradicional Guarani, estabeleceremos algumas conexões possíveis a partir da
narrativa 02:
Meu nome em português é Joel Pereira, em guarani é Kuaray. Eu moro na
Aldeia de Mato Preto (Erebango/RS). Nós somos uma aldeia, onde moram
dezenove famílias, são todos guarani, são todos da mesma família. Eu vou
falar um pouco dessa importância do espaço guarani, para uma comunidade
guarani. A gente sempre está refletindo, que sem tekoa não existe teko. O
espaço para o guarani é muito importante, porque ali ele consegue construir
a vida do guarani, mostrando para as crianças, essas crianças vão ser o futuro
do povo guarani. Então, o espaço no passado não existia um espaço
delimitado. Não existia nenhum tipo de limite para o guarani viver. Hoje
existe esses limites de espaços. que prejudica, um pouco, a cultura. Esses
espaços são cercados, na maioria, pelas grandes cidades, pelas plantações de
soja. É onde existe a maior dificuldade, em se buscar, em viver esse tekoa.
Às vezes, as próprias crianças, a maioria sai fora, e trazem as coisas ruins
para dentro das aldeias. Então, por isso é importante que se tenha um espaço
para construir um bom tekoa, para continuar mostrando essa cultura que vem
desde o passado, desde os nossos avôs, que hoje está correndo risco, devido
aos pequenos espaços que se têm. Para se buscar onde tem espaço, para se
viver, construir o tekoa, é sempre através dos mais velhos. São os mais
velhos que lembram das histórias, que também, com certeza, através de
nhanderú. Na maioria das aldeias hoje tem o karaí, que é o rezador, ele
está sempre se comunicando com nhanderú. Ele sempre fala onde é o lugar
bom. Mesmo que o lugar for devastado, que não tem mais mata, que foi
devastado pelos colonos, mas ele acha que aquele lugar, quando for
construído o tekoa, ela pode voltar tudo aquilo que foi devastado. Por
exemplo, pode voltar a mata, pode voltar as nascentes de rio, os animais,
tudo isso ele prevê. Prevê através de histórias, de comunicação com
nhanderú. Para ter um espaço bom, um bom tekoá, onde as comunidades
possam viver o seu teko, precisa onde tenha uma boa mata, um bom rio,
nascentes e é isso. Para viver um bom teko precisa de tudo isso. E para ver
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onde é que tem que ser construído o tekoa, não é qualquer um que prevê, é
através de nhanderú, junto com os karaí, os mais velhos. [Qual é a relação de
um tekoa com outro tekoa? Vocês estão aqui no norte do RS, como fica a
relação de vocês com o pessoal que está próximo de Porto Alegre, Estrela
Velha, ... Como vocês vêem isso, é um único tekoa, ou são vários tekoá?
Qual a importância em se ter esses vários espaços para a comunidade
guarani? Em que isso ajuda nesse jeito, nessa identificação guarani, que
vocês constroem junto a esses espaços?] Essa relação, no passado já existiam
várias tekoa. Nessas várias tekoa existia, por exemplo: se houvesse alguma
aldeia hoje, na minha aldeia em Mato Preto, tem familiares que moram na
região de Porto Alegre; então existe esse contato direto. Como eu falei no
começo, não existia um certo limite, como existe hoje. Não existia esse
limite no passado. Então, as famílias faziam diretamente o contato, quando
precisam iam para outro tekoa. Assim, essa é uma das coisas muito
importantes terem vários tekoa. Não existe nenhuma diferença de um tekoa
para outro. Porque o modo de vida é tudo igual. Diferencia, um pouco, nessa
questão de subsistência, que algumas aldeias sobrevivem de artesanato, e
algumas aldeias, por exemplo, na minha aldeia, as famílias vivem mais de
plantação, plantas de milho tradicional, batata doce, e essas coisas. É isso.
(NARRATIVA 02).
Após a sua apresentação o narrador 02 começa afirmando que “[...] Nós somos uma
aldeia [...]. Essa afirmação permite-nos constatar que a cosmovisão do indígena está
conectada ao pensamento e a inclusão do ser indígena no coletivo. Na narrativa 02, a aldeia é
o espaço em que as famílias moram e vivem sua cultura e seus costumes. Esse espaço é o
lugar de reflexão no qual [...] a gente sempre está refletindo, que sem tekoa não existe
tekó[...]. Essa maneira de pensar do Guarani aparece reafirmada em Melià (2010), o qual
salienta que o território em que esses indígenas habitam é chamado de “tekoha” e o “teko” diz
respeito ao modo de ser, as leis, aos costumes e a cultura desse povo. No fragmento: “[...] o
espaço para o guarani é muito importante, porque ali ele consegue construir a vida do
guarani, mostrando para as crianças, essas crianças vão ser o futuro do povo guarani [...],”
o narrador da narrativa 02 enfatiza a importância de mostrar para as crianças os ensinamentos
e como se constitui a vida dos Guarani, pois as kiringue são o futuro desse povo originário.
Percebe-se que o narrador faz menção à história dos povos indígenas antes da chegada dos
portugueses ao Brasil, à medida que afirma, que “[...] no passado não existia um espaço
delimitado [...]”, e que na contemporaneidade existem balizes demarcatórias para essas
coletividades viverem.
Quando o narrador narra “[...] para ter um espaço bom, um bom tekoa, onde as
comunidades possam viver o seu teko, precisa onde tenha uma boa mata, um bom rio,
nascentes e é isso. Para viver um bom teko precisa de tudo isso[...]”, constatamos a
importância de um bom espaço, na concepção guarani de mundo, para construir o tekoá, pois
o teko porã - bem viver - está em risco devido a essas delimitações que tornam o território
Guarani acanhado para viver, em plenitude, a cultura. Para examinar esse espaço, o indígena
escuta os mais velhos que ao lembrar-se das histórias de seus antepassados, os orientam no
espaço tempo.
De acordo com o narrador 02, o espaço-tempo é sentido através da figura do Karaí,
que pela comunicação espiritual orienta o indígena sobre o melhor lugar de construir a sua
tekoá. Embora haja a preferência por lugares com matas e nascentes, o Guarani recebe o
aconselhamento junto ao rezador e aos mais velhos da aldeia sobre o melhor espaço para
desenvolver o tekó. É no território Guarani que as narrativas são narradas. Elas constituem
parte do modo de ser, de viver e de cultivar as tradições. Conforme Clastres (1990), os
indígenas contemporâneos esperam revelações de Nhanderú para anunciar os novos tempos
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em que o homem possa transcender a sua condição, em busca da Terra sem Mal. Pois, se os
Guarani não estão em marcha, é porque estão à escuta de seus deuses. É por essa escuta que
ocorre a orientação da escolha da tekoá pelo Karaí. O espaço da escolha da tekoá relaciona-se
com o tempo do Karaí. Referente espiritual que por meio do sonho recebe o comunicado de
Nhanderú sobre o melhor lugar espaço - para construir - tempo - a tekoá. Esse espaço,
também, se relaciona com tempo, à medida que o sonho ou a comunicação espiritual é narrada
aos Guarani, nas manhãs, no pátio da aldeia. O espaço se conecta com o tempo quando o
Guarani com sua família se põe a caminhar em busca da tekoá e da construção do mesmo,
assim como, na vivência do tekó e dos ensinamentos de seus antepassados.
4. E o caminho: continua...
Após a consecução da investigação compreendemos melhor que a trajetória dos
indígenas Guarani do Rio Grande do Sul está marcada por momentos de genocídio como
visivelmente demonstrado no caso dos Guarani missioneiros. Concomitantemente, a
dizimação dos povos indígenas e a imposição da Língua Portuguesa e da tradição eurocêntrica
significou a extinção de muitas línguas indígenas e muitos saberes milenares, devido à morte
de muitos narradores indígenas. Contudo, as narrativas indígenas Guarani vêm resistindo no
tempo espaço à margem do mundo constituído por não indígenas.
Na análise empreendida, constatamos que nas coletividades Guarani no RS existe a
presença de narradores que narram suas histórias, seus mitos, seus saberes e seus conselhos
entoados por intermédio da oralidade. Constatamos também que esses narradores realizam o
ato de narrar as narrativas nas tekoás para as pessoas de suas comunidades diariamente. Os
indígenas narradores vivem nas tekoás, e têm a preocupação de disseminar a cultura
originária, a tradição de seus antepassados e as narrativas. Esses narradores, comumente, são
pessoas idosas, os avós e avôs guarani, dirigentes espirituais, professores, pais de crianças que
têm como objetivo principal transmitir os saberes, as tradições culturais, as histórias de
contato, os mitos de origem para as crianças e os mais jovens da aldeia. Nesse movimento e
tradição milenar de transmitir os conhecimentos e saberes predomina a oralidade. Embora
haja a predominância da tradição de oralidade, já existem narradores indígenas que têm
publicações, mesmo que pouco (re)conhecidas no RS. Por conseguinte, asseveramos que a
literatura indígena acontece nas coletividades Guarani do RS, comumente, pela oralidade.
Ressaltamos, ademais, que o diálogo sobre literatura indígena na contemporaneidade
requer uma mudança de paradigma que instaure nos sujeitos indígenas e não indígenas -
uma (res)significação do espaço tempo de cada um na história, reconhecendo os processos
de identidade/identificação, de alterização e da cultura do outro. Essa necessidade de mutação
vem ao encontro da comunicabilidade entre a oralidade (ancestral dos povos originários) e a
escrita (sistema ocidental moderno) estabelecida ao longo da processualidade social histórica,
considerando que a oralidade é uma forma de potencializar a escrita.
O processo de interação das narrativas nas coletividades Guarani estabelece sentido
mediante o respeito e reconhecimento à alteridade do outro e aos saberes que se movem e se
transformam no mundo por intermédio da palavra, seja ela, falada ou escrita, pois é através
dela que o modo de ser, estar e viver do Guarani transcende as gerações. É pela palavra que o
Guarani narra suas narrativas e as (re)significa em seu cotidiano, dado que desde criança
estabelece relações de sentido à medida que passa a compreendê-las.
Em relação à literatura indígena Guarani no espaço social e geográfico do RS
indagações permanecem, pois, os estudos em torno desse objeto permanecem incipientes.
Destacamos a dificuldade de encontrarmos bases de análises que discorram sobre literatura
indígena Guarani, dado que a literatura brasileira atual escasseia em autores que focalizam a
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produção literária indígena para que a literatura indígena no Brasil, e no RS, consiga ocupar
seu espaço de reconhecimento e de (re)afirmação dentro da história literária, e não a margem
do sistema euro referenciado instaurado por não indígenas.
Constatamos, enfim, que as narrativas indígenas, intituladas aqui como literatura
indígena, se diferenciam da perspectiva literária eurocêntrica, cabendo, assim o seguimento da
investigação, pois o caminho da literatura indígena Guarani entre nós continua... O processo
de (re)significação e (re)conhecimento da literatura indígena vem ao encontro do respeito a
cultura, a identidade e humanidade dos povos indígenas originários. Nesses termos, em
consonância com Melià: “Se os índios são tratados mais humanamente, somos nós que nos
tornamos mais humanos. ” (MELIÀ, 1984, p. 27).
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[Recebido: 16 jan. 2019 – Aceito: 16 abr. 2019]